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Tuesday, August 30, 2005

Piromanias autárquicas

Como já havia referido anteriormente, recebi um panfleto da Câmara Municipal de Loures relativamente aos fogos florestais. Este documento, com justificações legislativas à mistura, possui um título deveras sugestivo.


DEFENDER A FLORESTA

Competência municipal e obrigação dos cidadãos


Tomei a liberdade de digitalizar o dito edital, cuja imagem se encontra disponível.

Este documento é no mínimo revoltante. Citarei as partes que julgo mais marcantes, de forma a poder comentá-las.

“A ainda recente ocorrência, por todo o pais, de incêndios catastróficos veio demonstrar, se duvidas houvera, por que é que a floresta é considerada uma prioridade nacional”

Além da coercibilidade presente no título – a de uma obrigação dos cidadãos (que acontece se um de nós não desejar proteger a floresta?) – nota-se uma excelente dose de divagação relativista. Considera-se que a floresta é uma prioridade nacional. O que é uma prioridade nacional? Estas palavras assemelham-se às de Sampaio que afirmava que era necessário um “desígnio nacional para as florestas portuguesas” – tudo isto prova que os políticos, com formação académica ou não, estudaram todos na mesma escola. O uso da palavra nacional implica sempre a vontade do Estado e não a vontade nacional. Que outra necessidade de ser pronunciada teria se assim não fosse? Se os portugueses desejam fazer alguma coisa (se é que desejam fazer algo em conjunto de tal forma que mereça a classificação de nacional) não precisam de uma entidade que lhes diga que actuem colectivamente para combater um flagelo, i.e., o uso da palavra nacional por parte do Estado acarreta sempre os seus desejos e ansiedades e apenas prova que as prioridades nacionais são um estatuto que os governantes desejam decretar e não uma situação que se verifique.


Qualquer pessoa pode falar em prioridades nacionais mas nenhuma delas pode forçar sobre os seus “compatriotas” (disfemismo) aquilo que gostaria que fossem as suas prioridades. Assim como não pode o Estado. Eu não considero que a floresta seja uma “prioridade nacional” e, no entanto, o Estado (e a CM de Loures) está a declarar que eu devo considerá-la como tal.


“Já em 1990 a Câmara Municipal de Loures iniciou e deu continuidade ao processo de florestação do concelho. De então para cá foram plantados 240 hectares de nova floresta e intensificou-se a prevenção, vigilância e defesa da floresta.”


Confissão. A CML assume que transferiu gastos para a florestação do concelho e para a sua defesa. A florestação (mais uma vez, feita pelo Estado) acarreta custos redobrados já que os fundos não são apenas direccionados para as fases de plantação mas também para a “prevenção, vigilância e defesa”, coisa que não foi a vontade directa dos residentes. O edital prossegue com a explicação, não dos deveres mas das obrigações dos proprietários, gestores e responsáveis, de acordo com o decreto-lei nº56/2004 que, escusado será dizer, não foi aprovado nem pedido directamente pelos cidadãos. O texto não é muito preocupante até que se chega à parte do aviso aos proprietários. Segundo o referido decreto-lei, a autarquia tem toda a autoridade para invadir a propriedade privada. O documento prova o que digo embora pareça uma graçola de mau gosto. Não só os proprietários devem permitir que isto suceda como devem também facultar os acessos necessários às entidades seleccionadas pela CML. O edital não esclarece o que acontece se o proprietário não permitir esta entrada (mesmo que já tenha efectuado uma limpeza por sua conta). Intrigante.


O desfile de violações em nome da segurança florestal continua. “Obrigações das entidades privadas e dos cidadãos”. Não basta que mais uma vez usem a palavra “obrigação”, referem-se igualmente aos cidadãos como se estes não fossem “entidades privadas”. Se um individuo não é uma entidade privada é o que? Uma entidade colectiva? É melhor nem pensar que conceitos foram utilizados na formulação destas frases até porque a palavra obrigação passa a aparecer a negrito. O mais curioso é que, embora seja claramente afirmado que “os proprietários e outros produtores florestais das faixas de terreno que obrigatoriamente deviam ser limpas são obrigados a facultar os necessários acessos às entidades responsáveis pelos trabalhos de limpeza”, como referira anteriormente, o edital diz também que segundo o decreto-lei supracitado proprietários, gestores ou responsáveis por terrenos ficam obrigados (…) a efectuar trabalhos de limpeza. Se os proprietários têm que efectuar “limpeza” das suas florestas para que existem empresas contratadas pela CML para realizar o mesmo serviço? É quase impossível ser mais incoerente. Se por um lado há que facilitar o acesso aos serviços da CML (“como a realização das limpezas atrás referidas é da competência da Câmara Municipal de Loures”) a própria CML diz que os proprietários são obrigados por lei a executar os mesmos trabalhos de limpeza! As frases utilizadas nas duas partes do documento são distintas mas significam exactamente o mesmo, revelando que o único objectivo da lei é permitir que a autarquia possa invadir a propriedade privada apoiada pela legislação sem que necessite de prestar justificações. Caso contrário, que necessidade teria o proprietário de ser obrigado a efectuar a dita limpeza por si próprio?


A parte seguinte declara (ou avisa, dependendo do ponto de vista) que o indivíduo está expressamente proibido de realizar qualquer género de queimada na sua própria propriedade – “Tal só é permitido após licenciamento da Câmara Municipal, que designa a data para a realização dos trabalhos” (!) – sob pena de caução que se situa entre 100 a 3700 para pessoas singulares e 200 e 44 500 para pessoas colectivas. Não é mencionada a unidade referente a estes algarismos – se cebolas, batatas, feijões ou ervilhas – mas suponho que sejam euros. De qualquer das formas isto significa que se eu decidir queimar a minha propriedade ou se existir algum acidente que leve à sua destruição sou obrigado, por lei, a pagar uma coima, o que é completamente absurdo. O Estado decide punir-me pelo meu acto sobre aquilo que é meu. Por este caminho, brevemente, seremos punidos por destruir as latas de coca-cola depois de as bebermos – um acto claro e evidente de vandalismo.


A parte final é outra extremamente interessante.


“Qualquer pessoa que detecte um incêndio florestal é obrigada a alertar as entidades competentes e a tentar a sua extinção”


Isto significa que eu sou obrigado por lei a avisar alguém e a tentar extinguir o incêndio. E se eu não conseguir ligar para o 117? Sou punido por não ter bateria no telemóvel? (ou por não ter um?). Talvez seja também punido por não ter um extintor ou andar a passear pela floresta com um – afinal de contas, um homem prevenido vale por dois. A questão, repare-se, nem é a de que não se queira avisar as autoridades mas de que a CML diz que é obrigatório fazê-lo. Já não se fala em cooperação, fala-se em obrigação. Relativamente à situação sugerida anteriormente – se eu deixar a minha propriedade arder – sou um criminoso porque aconteceu, porque não avisei ninguém e porque não tentei extinguir o incêndio? Afinal, de quem é a propriedade, já que temos de prestar contas acerca do que fazemos dentro daquilo que é nosso e que nem sequer afecta os outros?


Em resumo, a CML aposta forte e feio na base da obrigação em vez da informação. Já atingimos o ponto em que não se apela ao civismo mas sim à obrigação que cada um tem perante a lei, mesmo que estejamos a lidar com aquilo que, em teoria, é nossa propriedade. Não se fazem quaisquer apelos à cooperação por parte dos munícipes em nenhuma parte do edital, muito pelo contrário, o texto está recheado de utilizações em tom autoritário das palavras obrigação e obrigações. À CML não basta ter gasto o dinheiro dos contribuintes numa florestação que foi sua decisão, precisa também de gastar mais na sua preservação e para isso, interferir na floresta que possa estar a cargo de privados. Estes, já não são incentivados a cuidar da sua propriedade (como se isso fosse necessário) mas forçados a tomar medidas que são contraditórias como as de limpar a floresta e deixar que a CML a limpe também – mais uma forma de justificar os orçamentos autárquicos. Talvez mesmo o pior de tudo isto seja que a CML se tenha dado ao descaramento de enviar folhetos com ordens a todos os cidadãos do concelho, publicidade essa, paga, ainda por cima, com o nosso imposto autárquico. Podiam ter mandado também o número do nosso destacamento e da coluna militar a que pertencemos. Loures agradece.



P.S.- Queria agradecer também ao presidente da Câmara Municipal de Loures, Carlos Alberto Dias Teixeira, pela inclusão do mini-dicionário de definições no edital. Ainda bem, porque se somos tão ignorantes ao ponto de achar que tudo isto que diz por aqui tem alguma lógica, também devemos precisar de esclarecimentos quanto aos significados de “área florestal”, “espaço rural”, “limpeza”, “queimada”, etc.

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