Por incrível que possa parecer, um colega de universidade disse-me isto. Eu sabia que ele era comunista mas pensava que os próprios comunistas já tinham deixado de elogiar o regime soviético porque lhes dava má imagem. O muro de Berlim já caiu em 89 mas a geração que não o viu cair, ou era demasiado nova para se recordar das suas implicações, é completamente descomprometida da necessidade de justificar os dilemas das utopias do passado. Não com pouca frequência se vê algum jovem irreverente com um discurso político que, em termos ideológicos globais, só faria sentido nas décadas anteriores à Guerra Fria.
Deveria pensar-se que um comunista dos tempos actuais (devendo já ter seguido o processo tradicional dos seus camaradas, abandonando as ideias da sociedade sem classes para abraçar a social-democracia) que esboce com um ar nostálgico ao recordar os "grandes feitos" da URSS, transmitirá a ideia contrária daquela que pretende visto que o regime soviético foi um dos mais repressivos de que há memória. Estaline e seus colaboradores assassinaram, directa ou indirectamente, milhões e milhões de pessoas. Incrivelmente, não só há gente que nega todos estes factos como existem aqueles que continuam a idolatrar Estaline. Grande culpa possui a ignorância histórica (muita dela politizada) que reina em Portugal. O desconhecimento de diversos aspectos sobre a História Universal impede que estas declarações lunáticas sejam travadas de imediato. Pelo contrário, se alguém disser, que Estaline foi um grande estadista, é provável que ninguém reaja. A mesma situação, substituindo Estaline por Hitler, levantará, no mínimo, um reflexo de confirmação («O quê?») acompanhado de uma indignação, por muito leve que seja.
Não é, portanto, de estranhar que este meu colega defendesse Estaline, assim como Fidel Castro, tentando depois insinuar que George W. Bush era muito pior, para além de ser um fascista da pior espécie. Provavelmente nunca ninguém lhe havia dito que Estaline não caberia sequer na designação de serial killer mas sim de mass murderer. Quando se lhe falava de gulags, desviava o olhar e também o assunto. A única coisa em que não pude deixar de reparar foi que, ao longo de tantos anos, provavelmente, aquele discurso de idolatria ao líder do grande paraíso soviético não tinha sido questionado por ninguém com quem ele se houvesse cruzado.
A situação não é muito diferente a nível geral, no meio científico, devido a uma alergia incutida contra as humanidades. As estruturas e os conteúdos programáticos esquematizados à força pelo Ministério da Educação ditam que o curso de humanidades deve ser separado do científico-natural. Em países como Espanha ou Inglaterra, um aluno do ensino secundário pode ter disciplinas distintas como física e história, ou química e economia/gestão, a título de exemplo. Em Portugal, a divisão é forçada mal se acaba o 3º ciclo, tendo o aluno de escolher um agrupamento específico, excluindo a priori as disciplinas de todos os outros cursos de ensino secundário. Esta situação gera efemeridades interessantes como um colega meu que, ainda que tendo 20 a matemática, julgava que Viriato era alguém que tinha combatido os mouros nas Astúrias. Quando se falava de história ou literatura, todos começavam com expressões faciais de repúdio às humanidades (como se fosse possível generalizar) dizendo que, certamente, nos tínhamos enganado no agrupamento. Esta separação artificial, para além de considerar que um aluno que gosta de biologia gosta de física ou que um que gosta de sociologia prefere o latim à matemática, estimula um certo elitismo académico que acaba por degenerar em distanciamentos escolares e efectivos de matérias importantes para as quais até poderia existir um certo interesse natural. Quando se tem amigos do outro lado da "barricada" (neste caso, humanidades), torna-se por vezes difícil o contacto porque, em discussões de um teor mais filosófico acerca de áreas do conhecimento, nos olham de uma forma diferente. Mais de uma vez fui confrontado com o poderosíssimo argumento «vocês, gajos de ciências!...», em resposta a uma qualquer discordância no meio de um debate. É fácil imaginar o sentido que pode levar uma conversa assim. O facto que desejava frisar é o de que este tipo de separação abre alas para uma ignorância generalizada em diversos ramos do conhecimento que, só por si, já é grande. Assim, e com a ajuda do sistema educativo, é fácil encontrar um físico marxista (...), um economista que confunde astronomia com astrologia ou um linguista que não sabe o que foi o Big Bang. Em qualquer das situações, o caso é muito grave mas no caso da ignorância histórica/política/económica, abre-se um caminho que afecta não somente o indivíduo em questão mas também a sociedade, já que o destino político comum acaba por ser decidido pelo conjunto dos eleitores.
Tendo em conta todas estas razões, eu não deveria ficar absolutamente estupefacto quando leio coisas deste género, vindas de pessoas que reclamam usar a razão a título diário:
"It is tempting for historians of science to make generalizations, as the title of this book – Stalin's Great Science – suggests. But where this particular book works best is in describing the adventures of individual physicists who laboured under the Soviet regime. Through a series of biographical sketches and amusing anecdotes, Alexei Kojevnikov, a historian at the University of Athens in the US, has produced a colourful portrayal of physics in the former Soviet Union."Movido em parte pela curiosidade, em parte pelo espanto relativo ao título - "Stalin's Great Science" - tentei procurar mais informação sobre o mencionado livro. Nas palavras da editora:
"In the process of making sense of the achievements of Soviet science, the book dismantles standard assumptions about the interaction between science, politics, and ideology, as well as many dominant stereotypes — mostly inherited from the Cold War — about Soviet history in general."Acabei por encontrar a versão completa da crítica (Gennady Gorelik) que foi anunciada na PhysicsWeb. A certa altura, o texto confirma as minhas suspeitas:
«The key aim of the book is to challenge what the author calls “one of the main postulates of post-war liberalism”, namely that science can only function properly in a political democracy. Kojevnikov wants to show that this is not true, using Soviet physics as a counter-example. Moreover, he tries to prove that Soviet ideology helped to bring about some novel physical ideas. Indeed, Soviet ideology was somehow responsible for the most influential Russian contribution to the history of science: Boris Hessen’s 1931 paper “The social and economic roots of Newton’s Principia”, which revealed new – external – dimensions to science as a social being.»
(...)
«In Kojevnikov’s view, Friedmann’s proto Big Bang cosmology was inspired by the “big bang” of the 1917 Soviet revolution.
(...)
Where Kojevnikov is “sufficiently confident” is that the physics of collective phenomena – from phonons to superfluidity – is indebted to “Soviet and, more generally, socialist thought”.
(...)
One indisputable advantage of a Stalinist regime – such as we have in North Korea today – is that it can spend money on any high-priority issue (including physics) without any debate or cost–benefit analysis, regardless of the population’s needs.»
Este tipo de dialéctica e conclusões, quase em jeito de desresponsabilização do regime estalinista por todas as suas atrocidades, acaba mesmo por levar o leitor a pensar que este foi bom para a ciência e esta até se encontra em dívida para com o socialismo. Como se pode ver no primeiro parágrafo desta crítica, o autor do livro tenta destruir o mito (?) de que a ciência só pode ser feita em regimes democráticos. Isto, só por si, é gravíssimo. Ninguém pode assumir à partida que assim o é, porque o processo criativo nasce do indivíduo, não do regime. Quem faz a ciência são os cientistas, não os governantes, o que implica que descobertas científicas podem ser realizadas em qualquer tipo de regime, incluindo os totalitários. Quando alguém aparece a dizer, quase em jeito de desculpa, que a ciência *também* é possível fora de países democráticos dando como exemplo algo da estirpe da URSS, há algo que não está bem. Estas pessoas acreditam que a ciência é um processo colectivizado e totalmente dependente do Estado ou simplesmente nutrem um amor tão intenso pela ditadura do proletariado que chegam a defender aquilo que ultrapassou a barreira do que é defensável.
Por ignorância, influência da comunicação social e puro interesse pessoal a nível político, creio que estas duas condições se verificam em harmonia e simultâneo na maior parte dos casos. Casos que chamaria de clínicos. E perigosos.
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