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Tuesday, November 22, 2005

Desmontagem política I

Em virtude dos últimos comentários feitos pelo Tiago Marques, achei que a minha resposta devia ser publicada aqui, para que possa ser lida em geral.

É sempre interessante ouvir um discurso extremamente politizado, vindo da bancada oposta. Especialmente quando é recheado de mitos e de falsas verdades, quando fui eu próprio a ser acusado de ter um conhecimento muito limitado da realidade. Não deixa de ter uma ponta de ironia. Vejamos, por partes, comentando parcialmente o que foi proferido.

1. “Existe uma ideia bastante errada muita gente pensar que toda a gente de esquerda é a favor de regimes comunistas totalitários. Absolutamente ridículo.”


Completamente de acordo. Cada vez que há um desses regimes comunistas totalitários, a existência de ‘gente de esquerda’ que esteja em discordância com as ditas formas de Estado é, simplesmente, desnecessária. Mais do que desnecessária, é incómoda. Por estas razões, é bastante errado (deveras, absolutamente ridículo) pensar que toda a esquerda apoia regimes totalitários. Se assim fosse, qual seria a explicação para todos os intelectuais de esquerda que foram eliminados nas purgas estalinistas e maoístas? Tens razão, é ridículo. A minha dúvida reside somente no facto de que tenhas mencionado isso. Eu não falei acerca de totalitarismos de toda a gente de esquerda. Estás a confessar alguma coisa involuntariamente?

2. ”A salganhada a que eu me referia era esse mundo liberal que tu idealizas sem quaisquer tipos de estados para fiscalizarem e controlarem o que quer que seja. Eu sou um humanista e tenho bastante confiança no Homem, ou seja, quero acreditar que o Homem é bom.”


Estilos expressivos aparte, esse quero acreditar diz quase tudo – confesso que parece quase uma ode a Rousseau, que teria gostado imenso de te ouvir dizer isso. Infelizmente, isso passa por uma visão muito pouco cientifica do ser humano. Achar que ele é “bom” por natureza (quando este próprio conceito é de fabrico humanista) é, no mínimo, especulativo e muito pouco realista. O Homem não é bom nem é mau – o Homem é um mamífero que, como qualquer outra espécie, luta pela sua auto-preservação como entidade individual e colectiva sob a forma de hereditariedade genética. Basicamente, estamos programados para sobreviver. Empiricamente, isto sente-se a partir de acções tão básicas como os impulsos nervosos gerados por reflexos condicionados até às mais obscuras razões por detrás da reprodução sexual. Sejamos honestos – ambos encaramos o Universo através da física. Qual é a tua razão, retirada de um contexto natural em que, prosaicamente, todos os materiais são mera poeira de estrelas, para dizer que o Homem é “bom”? Estarás a admitir alguma outra tendência natural que te faça passar para o campo da crença? É que nesse caso, voltamos ao dilema inicial – eu estou a falar de factos, não de ideologias. Tanto a dedução lógica como os factos experimentais estão do lado do capitalismo.

Não compreendo, no entanto, a tua contradição. Se acreditas que o Homem é bom, porque te referes a uma sociedade liberal (que eu idealizo) como “salganhada”? Se o Homem, por princípios naturais, é bom, que razões se apresentam para que uma sociedade liberal, i.e., onde a liberdade individual é um valor a preservar, colapse sobre si mesma?

3.”Em tempos também desejei viver numa sociedade anárquica sem qualquer tipo de controlo em que tudo pudesse estar acessível a toda a gente. Sim, porque no mundo existem alimentos e recursos mais que suficientes para toda a população, mas que simplesmente estão todos mal distribuídos.”


Anteriormente, referiste o meu conhecimento limitado acerca do que falava, estando em questão a minha ironia relativamente às declarações de J. de Sousa. Na verdade, apenas demonstravas a tua incapacidade em compreender o meu sarcasmo, revelando que não estás minimamente familiarizado com o seu discurso. É pena, mas quando eu não compreendo uma coisa, não a critico a priori. Esse não parece ser o teu caso, dado que te apressas a dizer – embora reclames andar a ler o meu blogue há várias semanas - que estas declarações demonstravam o que tu pensavas, aliás, como por ocasião de outras declarações minhas que não fizeste o obséquio de esclarecer quais foram. Lamento o discurso moralista mas é impossível ficar impávido perante uma pessoa que afirma tal e coisa e depois declara que há alimentos e recursos suficientes para todos e que a raiz dos problemas se situa na sua má distribuição. Eu não sei se tu reparaste como funciona a realidade. A economia existe porque não existem recursos infinitos nem a sua distribuição é, nem pode ser, uniforme ou homogénea. A deslocação ou a produção de um recurso representa custos que uma pessoa não está disposta a suportar a menos que obtenha algo mais valioso para si em troca. É assim que o mecanismo da civilização humana vai avançando. Acreditar ou sequer sugerir o contrário é viver numa utopia pura. Esse mundo não existe. As tuas declarações demonstram, portanto, o mais profundo desconhecimento acerca de como a mais básica troca directa entre dois seres humanos é efectuada.

4. ”Na minha opinião, o teu mundo ir-se-ia auto-destruir, pois determinados grupos iriam acabarar por ir ganhando poder, e cada vez mais poder, e por
último subjugariam o resto da população, criando-se uma nova hierarquia.”


Importas-te de explicar, por passos detalhados, como aconteceria isso? Não compreendo como pode existir uma sociedade que implode quando os seus ideais se baseiam na liberdade (de expressão, de associação, económica, etc.). A descrição do que citas parece-se mais com o comunismo, a total ausência de liberdade e a formação de uma oligarquia que detém os métodos de produção sob a máscara da propriedade colectiva que não é mais do que a posse totalitária por parte do Estado. Caso penses algo diferente, não te deixes levar pela propaganda. Lê a História dos últimos 250 anos se te for difícil compreender em termos abstractos.

5. ”É preciso haver algum tipo de fiscalização. São necessários Estados para regularem toda a actividade social.”


Inicialmente, disseste também que (a julgar pela gravidade, presumo ser aplicável a todo o teu discurso):

”Gostaria de esclarecer à partida que, na minha opinião, a liberdade é um direito ESSENCIAL para todo e qualquer homem. Aliás, tal está muito bem explícito da decalração dos direitos humanos, documento esse que tenho pendurado na porta do meu quarto.”


Poderia questionar-te sobre várias coisas quanto a isto mas tentarei tornar as minhas perguntas breves e sucintas.

Porque são necessários os Estados para regular toda a actividade social? Caso te referisses a esses mesmos Estados na frase precedente, por que razão têm de ser eles a efectuar qualquer tipo de fiscalização?

Se dizes defender a liberdade que, segundo o que afirmas, é um direito essencial, como esperas obter a cooperação de toda a gente para ser fiscalizada? Se te referias no sentido económico, como esperas que pague sem o uso de coerção? Já consideraste, alguma vez, a razão da existência do conceito de evasão fiscal que, só por mera curiosidade, é considerado crime? É a isto que chamas liberdade?

6. ”Mas ao fazerem isto, não me sinto menos livre como individuo. Sou um Homem, sou único, mas desempenho o meu papel num todo. Não perco a minha individualidade por causa disto. Achei ridículo um site que tens nesta página - NO2ID. Como se o simples facto de haver um cartão com o meu nome, o qual me dá uma Nacionalidade me fosse diminuir as minhas liberdades.”


Talvez o teu problema seja em compreender a génese conceptual da liberdade. O que tu desejas ou permites pessoalmente não implica, de forma alguma, que todos os outros que te rodeiam pensem da mesma forma. Tu achas ridículo o NO2ID. Milhares de britânicos parecem pensar de forma contrária à tua. Queres negar-lhes esse direito à sua liberdade? Para ti pode ser completamente irrelevante o registo dos teus dados numa base de dados estatal mas quem te dá a autoridade para decidir sobre o que cada um dos cidadãos do Reino Unido deseja fazer? Na tua perspectiva, a tua liberdade não é diminuída mas porque devem os outros pensar da mesma forma? Isto não entra em contradição com a tua proclamação sobre a liberdade que até era essencial?

Novamente, falhas redondamente na tua análise simplista dos factos. A existência de um bilhete de identidade não te gratifica com nacionalidade alguma. A tua (primeira) nacionalidade é obtida geralmente por um processo baseado no jus sanguinis (direito de sangue) ou no jus soli (direito de solo). O bilhete de identidade é um objecto completamente alienígena no que concerne à tua nacionalidade; nem sequer está relacionado. Há países como os EUA, o Reino Unido (por enquanto), a Dinamarca e a Irlanda que não têm um documento de identificação nacional. Isso não exclui os seus cidadãos da obtenção da nacionalidade. Se estiveres mesmo interessado em perceber porque me oponho ao esquema em questão, consulta esta página.

7. “Assim como acho que lá por poderem ter acesso a toda a minha actividade financeira sou menos livre. Se ao se fazer isto se conseguir diminuir a evasão fiscal que se faça. Só não quer quem tem algo a esconder.


O mesmo tipo de resposta que dei no parágrafo anterior se aplica a este caso. Só te falta defender a inversão do ónus da prova relativamente à evasão fiscal. De admirar é também a tua ingenuidade quanto à resolução do “problema” da economia informal.

O argumento de que só quem tem algo a esconder é que não quer ser investigado é uma falácia extrema. Por essa ordem de ideias, se eu recusar ser investigado, isso significa que pratico evasão fiscal, ou seja, a tua prova de que se comete um crime fiscal é dada pela não colaboração com a entidade fiscalizadora. Mais uma vez, segundo a mesma lógica, eu posso denunciar que existem armas biológicas de risco elevadíssimo em tua casa e a polícia pode invadir a tua propriedade privada apenas porque pensa que estas lá existem, sem qualquer esboço de evidência. Afinal de contas, quem não deve não teme, pois não? Com as actividades financeiras passa-se precisamente a mesma coisa. Defender o acesso aos movimentos bancários por parte do Estado e a liberdade, em simultâneo, é profundamente incompatível.

8. “Em relação ao Einstein, tens razão. A sua ideologia política nada tem a ver com as suas qualidades enquanto Físico. No entanto, para mim Einstein foi mais que um simples físico. Ele era alguém profundamente preocupado com a humanidade e com o rumo que ela seguia. Ele sempre quiz que todas as suas descobertas fossem utilizadas para um objectivo bom, ficando terrivelmente perturbado com a bomba atómica, que sem querer ajudou a construir. Gostaria que me esclarecesses porque o considera um "poço de contradições".


Sim, ele preocupava-se com a Humanidade. Aliás, sem sarcasmos, foi por essa mesma razão que assinou uma carta enviada ao presidente Roosevelt, incitando-o a iniciar um programa de pesquisa de armamento nuclear de forma a evitar que Hitler o fizesse primeiro. Não entendo o objectivo das tuas divagações. Também eu sou pacifista e preocupado com o rumo da humanidade. E daí?

Quanto às contradições, deixo-te quatro frases vulgarmente atribuídas a Einstein que fazem uma pessoa pensar acerca da sua coerência aquando das declarações a favor do socialismo:

"The hardest thing in the world to understand is income tax."

"Everything that is really great and inspiring is created by the individual who can labor in freedom. "

"In order to form an immaculate member of a flock of sheep one must, above all, be a sheep."

"Nothing is more destructive of respect for the government and the law of the land than passing laws which cannot be enforced."


9. “No que toca ao Orwell, ele escreveu as suas obras como forma de crítica e alerta sobre os regimes totalitários. Não só os comunistas, como também os fascistas. No entanto, os seus ideiais políticos não mudaram.”


Para mim fazem parte do mesmo. Não sei se já tinhas lido (já que dizes ler aqui há semanas) mas recomendo-te este artigo publicado no Ludwig von Mises Insititute. Os seus ideais mudaram e de que maneira. Deixou de bater-se por causas evidentemente perdidas (ele pôde presenciar os resultados da abolição de classes na Catalunha) e passou a defender o que ele chamava de “socialismo democrático”. Ele demorou tempo a entender as razões do não funcionamento do comunismo. Se hoje fosse vivo, provavelmente já teria desistido das ideias do socialismo democrático por razões de coerência com a situação que pretendia delatar.

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