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Monday, August 07, 2006

Silly season chega à Física

Físico italiano do início do século 20 esteve «morto» e «vivo» ao mesmo tempo

Para chegar a tal conclusão, o autor do artigo (que certamente não tinha nada de maior utilidade em que gastar os fundos concedidos) sugere que Ettore Majorana, o físico italiano a que se refere a notícia, terá produzido o seu próprio desaparecimento no que seria um teste aos "paradoxos" da mecânica quântica. Explica o artigo da Ciência Hoje:

«O físico teórico Oleg Zaslavskii, da Karazin Kharkiv National University da Ucrânia, sugere agora que esta ambiguidade à volta do seu destino poderá na realidade ser parte de uma ilusão magicada por Majorana para demonstrar a sobreposição quântica. Este paradoxo em que uma partícula pode simultaneamente existir em dois estados quânticos mutuamente exclusivos é exemplificado pelo gato de Schrödinger uma experiência dura em que o gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo.»

O problema está em que Majorana não é uma partícula (nem uma onda de comprimento relevante, ver princípio de De Broglie) e a gedankenexperiment de Schrödinger servia precisamente para demonstrar o absurdo que eram os princípios da mecânica quântica quando aplicados ao nível macroscópico em que a física válida era a newtoniana/einsteiniana, transformando uma previsão científica válida num aparente paradoxo. O gato de Schrodinger estaria simultaneamente morto e vivo - a sobreposição de estados - devido a uma substância radioactiva que tinha 50% de hipóteses de decair, accionando um mecanismo de envenenamento letal do gato.


Esta questão levou a um dos mais intensos debates filosóficos sobre a ciência, ao longo do século XX, com o objectivo de compreender a física quântica, que incluiria temas como o paradoxo EPR, o determinismo (Einstein) vs. a interpretação de Copenhaga (Niels Bohr), as variáveis escondidas, as mais metafísicas e esotéricas propostas da existência de universos paralelos ou multiversos, em que cada um veria diferentes resultados da experiência, e as ainda mais místicas explicações sobre a ligação entre a mente do observador e a interpretação da experiência em si, etc. Tais problemas continuam a ser contestados até à data, não tendo sido esclarecidos nem mesmo com a famosa experiência proposta por John Bell e realizada, nos anos 80, pelo físico francês Alain Aspect, ou outras versões mais contemporâneas. O assunto continua a ser controverso, assim como as desigualdades de Bell e as experiências para as testar, que continuam a ser objecto de forte crítica por falhas sistemáticas que até agora não foram resolvidas, assim como a validade duvidosa do uso de princípios de mecânica quântica quando aplicados à teoria de gravitação.

O que tem tudo isto a ver com Majorana? Aparentemente, Majorana tentou suicidar-se e sobreviver ao mesmo tempo. A menos que o ucraniano Oleg Zaslavskii, autor do artigo em questão, consiga provar que existem universos paralelos ou fornecer qualquer outra explicação científica plausível e falsificável, não se compreende muito bem a razão de tal sensacionalismo jornalístico exposto nos títulos da notícia nem da importância científica (não-histórica) do artigo propriamente dito. É que Majorana pode realmente ter desaparecido devido a uma experiência que realizou para testar "paradoxos" da mecânica quântica mas o facto de não ter voltado para a contar parece revelar que afinal não havia paradoxo algum e o resultado da sua pequena tentativa de suicídio foi apenas um.


Notas:

1. Notícia sobre o mesmo artigo apareceu na New Scientist. Isto é bastante estimulante porque se se quiser propor uma nova teoria vista como heterodoxa é muito difícil encontrar quem publique, devido ao intenso peer review (que não é o caso da New Scientist) ou simplesmente porque parece demasiado arriscado publicar tal coisa. No entanto, se for um artigo, por mais absurdas ou irrelevantes que sejam as conclusões científicas, mas com base na teoria consensual, as facilidades aumentam em grande escala.

2. Claro que segundo a teoria da mecânica quântica existe até uma probabilidade de que Ettore Majorana se tenha dissolvido e aparecido num planeta de outra galáxia. No entanto, como devem imaginar, a probabilidade teórica de tal acontecer é suficientemente próxima de zero para que possamos dormir descansados.

3. O artigo publicado no arXiv (17 páginas) pode ser lido aqui gratuitamente. Nada de fórmulas matemáticas. Também a ler o comentário de Andrew Jaffe e leitores respectivos.

4. Não tem a ver com o tema principal mas passou há dias na 2: um documentário sobre Einstein e a teoria da relatividade, que pretendia ser uma introdução elementar, direccionada a estudantes adolescentes, sobre a relatividade restrita, os seus conceitos e a importância do trabalho de Einstein para o conhecimento actual da física moderna, especialmente nos ramos de física gravitacional. Qual é a relevância de apontar isto? Esse dia foi sexta-feira. Uma sexta-feira do mês de Agosto. E o documentário começou às 3 da manhã. A menos que esteja na esperança de que haja uma terceira chamada para o exame de Física do 12º ano, e uma vez que os interessados têm acesso a coisas de melhor qualidade, poucas chances há de que algum dos elementos do público-alvo estivesse a ver o dito documentário. Ou será que nem existia um público-alvo e esta transmissão e outras semelhantes servem apenas para que o MCTES possa reclamar, em acções futuras, um trabalho magnífico em prol do conhecimento entre as camadas jovens?

5. Quem seguiu alguma das ligações usadas na parte anterior reparará como é cada vez mais difícil viver sem a Wikipédia.

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