Numa palavra, sim. Mas vamos lá ver:
«Mas o ponto é que os anarco-comunistas não pretendem impedir o "comércio livre" per si - o anarquismo reconhece o direito de um individuo não pertencer a nenhuma comuna nem a nenhum "colectivo de trabalhadores" e ir trabalhar por conta própria, relacionando-se com os outros individuos (e comunas, sindicatos, etc.) de forma "mercantil". O anarco-comunismo acha que é melhor os indíviduos associarem-se em "comunas" em vez de trabalharem por conta própria, não que os individuos têm que pertencer a "comunas".»
Esta noção de anarco-comunismo é bastante interessante. Se é proposto que um indivíduo tenha o direito de não pertencer a nenhuma comunidade em específico e não tenha forçosamente de fazer parte de um colectivo de trabalhadores, como se impede - sem coerção, atenção - que a sociedade se fragmente e crie uma economia capitalista, por sua conta, em que a propriedade possa ser definida livremente a nível individual? Existe uma diferença entre o anarco-comunismo definir que os indivíduos devem associar-se em comunas e simplesmente achar que assim deve ser. Se o anarco-comunismo propõe um sistema em que as pessoas são livres de decidir, então estaremos, provavelmente, a falar de anarco-capitalismo, onde não há restrição a definir a propriedade de forma individual ou associativa, contando que não se interfiram mutuamente de forma a respeitar os direitos dos seus membros (seja a vontade destes em manter uma associação com uma gestão colectiva ou de proteger a propriedade privada).
Se, num sistema em que a propriedade é abolida, os indivíduos em si não têm direito a nada em termos singulares (apenas no colectivo), como se pode considerar que estejamos perante uma sociedade livre (ou, no sentido da discussão, anarquista) quando estes indivíduos estão impedidos da posse sobre o próprio fruto do seu trabalho, impossibilitados de comerciá-lo num mercado de trabalho (capitalista)? Relembre-se que impedidos de manter meios de produção por si próprios, estariam forçados a trabalhar para uma comuna ou a mudar para a jurisdição de outra comuna. Sarcasmo aparte, haverá melhor definição de exploração laboral do que esta?
«Então, se os anarquistas sociais (de que os anarco-comunistas são apenas uma facção) não querem abolir o "comércio livre", o que é que querem abolir? Resposta: a propriedade! Claro que os individuos continuarão a poder "ter" a "sua" casa, as "suas" ferramentas de trabalho, etc. Não poderão ter é bens que lhes permitam comandar o trabalho dos outros - p.ex., um individuo não poderá possuir uma fábrica (que, em principio, será propriedade da comunidade, tendo os trabalhadores como usufrutuários).»
É impossível abolir a propriedade sem abolir implicitamente o comércio livre. O comércio poderá existir, é claro, mas não por isso será livre já que os indivíduos não teriam direito a deter a propriedade sobre nenhum dos meios de produção. Como pode ser isto considerado livre? E se o anarco-comunismo, como foi dito acima, «reconhece o direito de um individuo não pertencer a nenhuma comuna nem a nenhum "colectivo de trabalhadores" e ir trabalhar por conta própria», como é que pode, em simultâneo, abolir a propriedade privada e consecutivamente impedir que este indivíduo trabalhe por conta própria? Também não se compreende a razão pela qual um indivíduo não pode deter a propriedade da fábrica assumindo que foi ele que financiou a sua construção. Se esta posse é ilegítima, deixa de existir incentivo para construir qualquer fábrica a não ser as controladas pelo "colectivo" (eufemismo para qualquer outra coisa bem pior). Porque não deve poder um detentor dos meios de produção empregar alguém de livre vontade, tratando-se de um acordo livre de mútuas as partes?
Outra questão que surge é - quem dá o direito aos que adoptem um sistema, como o de instalar comunas, de o impor, definir a forma de produção das comunidades alheias e dos seus elementos mesmo contra a sua vontade?
«Mas, poder-se-á perguntar, para abolir a "propriedade" não é preciso um "Estado"? Como é que, sem "Estado", se vai impedir quem queira de possuir uma fábrica, uma grande fazenda, ou o que fôr? É que a abolição da propriedade não requer nenhum acto "positivo" - não é necessário que um "Estado" vá confiscar a fábrica ao seu proprietário; é apenas necessário um acto "negativo" - que não haja nenhum "Estado" para fazer respeitar a "propriedade" do "proprietário".»
O comentário do Miguel assume implicitamente uma visão da propriedade como algo não natural, sendo apenas um resultado final da lei imposta pelo Estado. Acontece que esta visão dos factos não representa a realidade e aí reside toda a confusão sobre a ideia de que o anarco-conumismo é válido ao idealizar um sistema em que o conceito de propriedade é distinto de qualquer ideologia que defenda a liberdade. Claro que poderemos imaginar que 100% das pessoas desejariam ter um regime anarco-comunista - caso em que este seria válido - mas isso é totalmente ingénuo, como eu sugeria na entrada anterior. Assume-se que ninguém estaria a favor de um reconhecimento (mesmo que mínimo) da propriedade privada, o que é totalmente contra a natureza humana e todo o panorama oferecido pela história da humanidade que, na verdade, não pode ser dissociada da anterior. Por todas estas razões, o anarco-comunismo é absurdo já que utiliza inadequadamente a palavra anarquia quando necessita de um Estado para impor a sua visão totalitária de como deve ser a sociedade ou de uma alteração genética significativa das faculdades do ser humano (ou lobotomias generalizadas) para que ninguém questione essa ordem. Não será, certamente, por coincidência que tantos comunistas como anarco-comunistas falem da necessidade de uma "mudança de mentalidades" para que tais regimes sejam possíveis. O que estas ideologias desejam não é criar um modelo mais justo, mais equitativo, etc., etc., mas sim recriar o próprio Homem.
De lembrar que a ausência de Estado implica que, necessariamente, exista um mercado livre. O Pedro, que comenta a resposta do Miguel Madeira no Vento Sueste, por exemplo, julga que:
«O "desrespeito pelos direitos de propriedade" de que o luispedro diz que teria lugar num sistema anarquista existe de maneira muito mais explícita no seu sistema capitalismo, pois o Estado Capitalista reprime violentamente e sistematicamente todos aqueles que exigem o direito de propriedade de algo, menos aquele - o proprietário "legítimo" - que protege, invariavelmente o mais poderoso social e economicamente entre aqueles em contenda.»
O que levará o Pedro a pensar que num sistema anarquista as pessoas deixariam de desejar proteger a sua propriedade? Igualmente, a sugestão, provavelmente por influência da luta de classes marxista, de que o capitalismo protege a propriedade dos mais poderosos é uma concepção errada. O capitalismo não faz julgamentos morais acerca de quem tem mais ou menos poder, mais ou menos recursos monetários e o direito de propriedade deve ser respeitado independentemente de quem o reclama. Se o Pedro se refere a interpretações que tentem, de alguma forma, optimizar a utilidade social (ou qualquer referência, sem sentido, equivalente), então gostará de saber que coisas como essa são consideradas um desrespeito pelos direitos de propriedade por qualquer pessoa que não os veja como um mero artifício legal para atingir resultados de engenharia social desejados ou planeados a priori.
Importante será também não confundir o que seria a propriedade colectiva da expropriação, que é um exemplo típico. Uma fábrica pode ser controlada pelos seus trabalhadores desde que seja propriedade sua, assim como pode ser controlada por alguém que não lá trabalhe desde que seja considerada propriedade sua. São regras de natureza social que nasceram espontaneamente e permitiram à humanidade viver e evoluir colectivamente até ao momento.
Geralmente é neste ponto que se diz que os defensores da propriedade privada estão iludidos e não conseguem sair do mindset da existência do conceito de propriedade e que este nem sequer devia existir em primeiro lugar porque os bens, assim como a terra, pertencem a toda a humanidade, à sociedade,ou qualquer conceito romântico que se lhes assemelhe. Infelizmente, terá já sido notado que para designar tais coisas utilizamos os conceitos de "pertença", "posse" e "propriedade" e que concepções paradoxais como a de que a propriedade privada constitui um roubo à sociedade não fazem sentido porque, se não existir um conceito de propriedade, roubo também não poderá ser definido, uma vez que não havendo uma noção abstracta de propriedade, nada poderá ser roubado.
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