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Thursday, June 01, 2006

Estatísticas pirateadas

De vez em quando surgem estatísticas dos "prejuízos" das editoras discográficas e produtoras de software. A mais recente dá conta do seguinte:

Software pirata gera perdas de 80,92 M€ em Portugal

Depois de estimado o impacto económico da pirataria (relatório publicado também pela IDC no final do ano passado), o presente estudo conclui que a utilização de software ilegal cresceu em quatro regiões do mundo (Europa Ocidental, Ásia-Pacífico, América Latina e União Europeia), tendo diminuído no Médio-Oriente-África e Europa Central e Oriental, para ficar inalterado na América do Norte.

(...)

O estudo recolhe dados sobre o software instalado num determinado período, calcula o seu valor legal e subtrai ao valor facturado pelos estabelecimentos existentes no retalho. O resultado equivale ao peso do material pirateado e esta fórmula simples é a base metodológica para os cálculos do estudo.

A pirataria de software «tem severas consequências económicas: o enfraquecimento das indústrias de software local devido à concorrência desleal (…) perda de receitas de impostos e de empregos devido (…)», segundo nota o relatório.


O documento original, que pode ser lido na página da BSA [pdf], permite entender aquilo que a maior parte deste género de estudos nunca menciona:

1. Fala-se sempre dos prejuízos que as companhias de software têm com as actuais percentagens de pirataria por parte dos consumidores, utilizando os números estimados para os preços das aplicações piratas instaladas. Faz-se, portanto, uma equivalência entre o custo total do software que não foi pago e o que teria sido pago caso fosse instalado de forma legal. Esta análise ignora por completo o efeito dissuasor que os preços elevados têm sobre os potenciais clientes, já que se assume que estes comprariam exactamente a mesma quantidade de produtos que consomem na actual forma pirateada *

2. As empresas da indústria de software informático dizem que a sua expansão (e o seu lucro) é afectada pela pirataria generalizada e largamente distribuída de forma global mas esquecem que numa hipotética situação em que um mercado negro esteja impossibilitado de existir, uma fracção significativa dos utilizadores de software permaneceria com versões antigas durante um período de tempo mais largo, não compraria de todo o software comercializado, estaria menos disposta a comprá-lo ou mudaria para projectos open-source que são grátis ou infinitamente mais baratos quando comparados

3. Constantemente é utilizado o argumento de que a pirataria gera um impacto económico (negativo) relevante na economia, fazendo com que não seja acrescentado tanto valor por estas empresas como poderia eventualmente acontecer, reduzindo também a criação de emprego, que é menor do que seria na situação idealizada. Esta ideia entra novamente em contradição com o facto de tais previsões serem feitas tendo em conta o modelo falacioso referido no ponto 1 e, adicionalmente, porem de parte o impacto que teria na economia a cessação do uso do software por parte dos actuais utilizadores de versões piratas que também não são dissociáveis das economias dos respectivos países

4. As conclusões destes estudos, alicerçadas nos problemas evidenciados nos pontos anteriores, sugerem sempre um combate mais feroz à pirataria na base utilitária do benefício comum (provavelmente se fizessem valer a questão direitos de propriedade em si, ninguém lhes daria atenção) mas nunca avaliam os custos desse combate quando comparados aos efeitos que teriam as potenciais vendas na dinâmica das empresas (em parte porque os modelos anteriores estão errados) nem na restante sociedade já que esta imposição legal mais exacerbada seria obviamente paga com o dinheiro dos contribuintes e, provavelmente, em muitos casos, em detrimento das suas liberdades

5. Pede-se sempre civismo e compreensão pelo seu trabalho (coisa que é comum à indústria discográfica e cinematográfica) mas, misteriosamente, não se pede ao Estado que reduza os impostos de consumo sobre tais produtos, o que é ainda muito mais cívico e igualmente compreensível. O estudo presente mostra taxas de pirataria reduzidas para países como os EUA, NZ, Áustria e países desenvolvidos em geral. Não é apresentada nenhuma correlação com um indicador macroeconómico como o PIB per capita que permita entender estatisticamente a ligação que existe entre a riqueza de um país, o custo de vida e o poder de compra que possibilite adquirir facilmente tais produtos. Como não é feita semelhante análise para os países subdesenvolvidos, ignora-se em absoluto o facto de que os preços praticados por estas companhias estão muito acima do seu valor no mercado e do preço que as pessoas estão dispostas a pagar por ele. Países como Zimbabué, Indonésia e Vietname apresentam taxas de ~90%, o que deveria, no mínimo, levar estes produtores a considerar baixar drasticamente os preços, como fez a Microsoft ao introduzir o Windows Xp Starter Edition, uma versão low-cost do Windows XP já lançada em mais de 20 países pobres e que visa combater o uso de cópias piratas e o avanço galopante da quota de mercado que os sistemas GNU-Linux vão ganhando nestes locais. Entretanto, enquanto os outros países europeus sofreram uma oscilação para -1% ou -2% nos níveis de pirataria, Portugal é referido como caso notável por ter aumentado em 3%. Porque será?

6. Propositadamente, é esquecido o marketing e publicidade que são gerados através da pirataria. Poderá parecer uma ideia peregrina mas não deixa de ser real - os produtos não seriam tão conhecidos se não existisse um uso tão massivo (que inclui uma boa percentagem de utilizadores com cópias ilegais). Este factor natural denota-se especialmente na acção de empresas que estão a entrar no mercado ou têm uma quota muito pequena e é a razão pela qual muitas destas fornecem freeware ou shareware, na esperança de chegar ao conhecimento dos prováveis utilizadores, cobrando posteriormente por versões mais sofisticadas. As grandes empresas já estabelecidas poucas vezes o faziam porque se julgavam no direito de manter ou expandir o seu actual volume de negócios, sem modificar as suas estratégias de mercado menos arriscadas a priori mas que acabam por gerar, na realidade, menos proveito. Actualmente, já temos muitas aplicações cedidas de forma gratuita embora com menos qualidade do que outras versões disponíveis para venda.

7. As empresas nunca avaliam o mercado que perdem por introduzir técnicas de segurança nos seus produtos. Mais uma vez, poderá parecer uma ideia bizarra não estabelecer estes métodos mas quem já instalou e usa software com propriedade saberá que as exigências e condições são muitas vezes restritivas e o controlo constante que as empresas fazem sobre a cópia em uso afectam até a própria perfomance dos computadores. A este aspecto juntam-se os métodos de compra e os formatos utilizados. Não é estranho que a compra por download (digital) em vez de envio por correio (físico) seja cada vez mais comum, verdade que se aplica tanto a livros como música e programas informáticos. A Stardock, por exemplo, implementou um sistema de download relativamente simples para o seu jogo Galactic Civilizations II e não sobrecarregou os seus clientes com necessidades irrelevantes como a presença do CD no leitor. Esta filosofia de venda mereceu a crítica de outras empresas apesar do GalCiv II ter disparado para os primeiros lugares dos tops de vendas, ainda que não seja um jogo de grande mercado (estratégia por turnos).

8. Nestas contas não se inclui a quantidade de utilizadores que tem cópia válida mas arranja uma pirateada por diversas razões como as apresentadas no ponto anterior. Em muitos casos, estas cópias permitem que não haja necessidade da presença constante do CD ou que não seja necessário um processo de verificação da autenticidade da cópia de cada vez que se deseja utilizar a aplicação (assim como da transferência para outro hardware).

9. Qualquer justificação, por mais descabida que seja, serve - estas empresas também dizem que os Estados recolhem menos impostos, uma vez que as vendas são ilegais. À semelhança do ponto 5, se estivessem interessadas em contribuir mais para a causa dos opressores, defendiam impostos mais baixos.

É certo que muitas das variáveis necessárias para que se conhecessem todos estes parâmetros não estão acessíveis mas, precisamente por essa razão, estes estudos não podem ser apresentados como se fossem relatórios de vendas ou de prejuízos. Estes estudos dão apenas belos títulos de imprensa sensacionalista mas não permitem ao leitor avaliar as consequências de um combate à pirataria ou sequer a razão da sua existência. No máximo, são um panfleto publicitário do ponto de vista dos interesses das empresas de software, não dando qualquer possibilidade de retirar conclusões lógicas ou racionais acerca dos debates sobre propriedade intelectual e sua defesa.

O ponto alto do estudo é aquele em que se diz o seguinte (repare-se como uma projecção de estatísticas se torna, de repente, "estranhamente" autoritária):
«Governments can increase public awareness of the importance of respecting creative works by informing the public about the consequences of disobeying the law, expressing their intent to strictly enforce those laws and encouraging the use of legitimate software»
A intenção de debater o assunto é nula. Então porque chegam estas opiniões à imprensa como se fossem notícias? De alguma forma, a BSA (Business Software Alliance, nome nada claro como se nota) terá sido confundida com uma inocente agência noticiosa.

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* No final do documento, é analisado este método para calcular as perdas. O sistema para fazer a correlação baseia-se nas compras de hardware novo que supostamente mostrariam uma ligação com a compra de software legal. Não se compreende qual a forma utilizada para concluir acerca da compra de software já que a compra de computadores montados é apenas uma parte do mercado e é impossível, nestes casos, saber se o utilizador planeia desinstalar o sistema operativo residente para instalar outro. Também é utilizada uma falácia económica para justificar que o combate à pirataria traz mais lucro às empresas de software (o que parece ser verdade de acordo com os resultados) e que isto gera, por si mesmo, maior crescimento económico geral. Esta conclusão olvida que o dinheiro que for redireccionado para comprar software legal seria utilizado para qualquer outra actividade se a cópia não tivesse de ser necessariamente legítima.

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