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Thursday, February 01, 2007

O outro nome do individualismo

D. José Policarpo falou anteontem sobre os perigos da liberdade individual sem responsabilidade e do invidualismo, apontando que ambos são evidentes "nos acidentes de viação, nas agressões contra o ambiente, no abandono e abuso de crianças, no aborto". Diz ainda o cardeal patriarca que "o exercício individualista da liberdade origina uma sociedade permissiva".

O que têm estas declarações a ver com a liberdade individual ou o individualismo? A verdade é que não têm absolutamente nada. D. José Policarpo comete o erro bastante frequente de utilizar a palavra individualismo ou a expressão liberdade individual para caracterizar toda e qualquer acção levada a cabo pelo o indivíduo ("exercício da liberdade num perspectiva individualista onde cada um pode fazer tudo o que quer e lhe apetece") e que provoque danos em terceiros sem que este seja verdadeiramente responsabilizado pelos seus actos, apelidando, equivocamente, de individualismo à sua negação. O problema está em que isto tem muito pouco a ver com a única definição conceptual aceitável de liberdade individual. Uma liberdade individual a sério reconhece o direito de todo e cada indivíduo não apenas a ser um indivíduo, como a ser um individualista total. Como tal, a única formulação coerente deste princípio resulta numa esfera de direitos individuais que qualquer pessoa, por muito individualista que seja, não pode violar quando lidar com outros, razão pela qual a responsabilização pelos seus actos é intrínseca ao próprio exercício desta liberdade individual. Quando esta esfera não é respeitada, dá-se um crime de agressão a outro indivíduo que pode surgir sob imensas formas. Daqui resulta que falar de uma liberdade individual sem responsabilidade não faz sentido algum - em especial porque estas desresponsabilizações resultam de uma atribuição ingénua de deveres a um conceito abstracto de sociedade e não ao indivíduo ou de uma definição de bens colectivos - e que uma sociedade permissiva, no sentido que o cardeal patriarca lhe atribui, seja, muito pelo contrário ao que afirma, precisamente uma que não respeita os princípios destas liberdades individuais.
Na verdade, se todos estes conceitos não fossem verdadeiros na sua forma geral e aplicáveis, de maneira pragmática, através de uma norma legal, a questão polémica do direito a realizar um aborto nem se levantaria porque não poderia ser colocada a hipótese de o feto/embrião ter direito à sua liberdade individual de viver, ou seja, de não ser eliminado - que é precisamente o que o cardeal patriarca defende embora ataque esse princípio - já que não existiria qualquer barreira à acção da liberdade individual da mulher que deseje abortar.

Apesar da contradição total deve notar-se a utilidade inegável deste argumento. Ao reconhecer implicitamente que os defensores do "sim" vêem na possibilidade de opcionalmente realizar um aborto uma liberdade individual, por não reconhecerem qualquer direito inerente ao feto/embrião, Policarpo retorque na mesma moeda (ainda que, como apontado antes, a consequência lógica do que realmente deseja seja a atribuição de uma protecção legal para que as suas liberdades individuais não sejam violadas através do acto de outrem) porque não só reconhece que o argumento da "liberdade de escolha" da mulher usado pelo "sim" é logicamente válido para si como, para o tentar refutar, adopta uma postura de ataque à liberdade individual que ele próprio deveria estar a defender, apontando de seguida como falso o seu uso no caso dos defensores do "sim" que utilizem esta retórica.

Como eu dizia acima, isto é extremamente útil. E a razão é muito simples. É que ultimamente têm estado a surgir no imenso ruído que são a maioria das discussões alguns pontos que inevitavelmente se começam a assemelhar com fundamentos liberais. E isto é inevitável uma vez que o próprio conflito de interesses que está no origem do problema - qual deve ser a norma jurídica face ao aborto - é de ordem liberal; contrapõe-se o direito de a mulher não ser coagida a efectuar uma escolha que não é a sua, para quem considera que o feto/embrião não deve ter direitos equivalentes ao de qualquer outro ser humano desenvolvido, com o direito deste a não ser literalmente executado, para quem considera o contrário. Como isto é extremamente inconveniente para vários elementos de ambos os lados que não estão dispostos a debater o tema sobre pressupostos sérios que admitam esta tensão, nomeadamente porque introduz as questões do momento em que se pode afirmar que existe uma (potencial) vida humana merecedora de direitos e a aplicabilidade efectiva de uma lei que os resguarde, praticamente todos acabam por utilizar um argumento motivado como resposta a um qualquer problema social, anunciado de forma alarmante, que encontre alguma especial atenção na sociedade, seja este o avanço de um suposto progresso cultural ou a instrumentalização do ser humano para a manutenção da estabilidade das taxas de natalidade do país. Isto é um jackpot dos grandes - num país como Portugal, que podia ser perfeitamente confundido com uma antiga república soviética não fosse o facto de estas terem dado um valente pontapé no comunismo, qualquer apelo a desígnios colectivistas como estes (que aparentam ter uma inspiração algures nos swings legislativos entre Lenine e Estaline) representam votos praticamente garantidos.

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