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Wednesday, December 20, 2006

A tradição de ser contra a tradição

Hoje à noite, a convidada de Ana Sousa Dias no programa Por outro lado, transmitido pela 2:, foi Pilar del Río. Pilar del Río é uma senhora de meia-idade com um cabelo impecavelmente arranjado e, pelo teor da entrevista, com bastante experiência pessoal em técnicos de estética capilar. Mas há mais, Pilar del Río não só tinha um cabelo impecavelmente arranjado (para dizer a verdade, provavelmente sujeito a uma coloração artificial), usava também pendentes brilhantes nos lóbulos das suas orelhas, uma camisola decotada e uma saia. Notava-se também a maquilhagem que aperfeiçoava os contornos da sua cútis acetinada e o batom que fazia os seus lábios mais proeminentes e vistosos. Para além de tudo isto, teve a graciosidade inigualável de fazer um monólogo bilingue com Ana Sousa Dias, falando um castelhano (língua secular baseada de forma incontornável em outras milenares como o latim vulgar e o euskera) de gramática aparentemente de acordo com a norma estabelecida pela Academia Real Espanhola e uma pronúncia descafeínada entre o português e o andaluz (outra língua secular, mas desta vez baseada também na fonética moçárabe). Há mais ainda. Para além de ter utilizado expressões idiomáticas em castelhano, Pilar de Río disse que estava casada (pela segunda vez) com José Saramago e que tinha animais domésticos na sua casa em Lanzarote.

O ponto culminante do monólogo foi, portanto, quando Pilar del Río se revelou totalmente contra toda e qualquer espécie de tradição. As suas afirmações anteriores sobre Franco, o catolicismo e o mundo da moda e respectiva indústria denunciavam já a sua alma de eterna progressista, sempre em busca de uma revolução social que não deixe a sociedade sedentarizar-se (se não forem os sutiãs queimados e a libertação dos grilhões que impiedosamente amarram o Homem a si mesmo, que sejam os direitos humanos dos símios e robôs ou coisa semelhante). Pilar del Río deu alguns exemplos de tradições que a deixavam incomodada e Ana Sousa Dias, num dos seus raros momentos de despertar da letargia em que mergulhara no início do programa, ainda esboçou uns comentários indignados sobre receitas culinárias que passavam de geração em geração. Mas nada, Pilar del Río era totalmente avessa a toda e qualquer tradição ou regra herdada existente, fosse ela qual fosse.

Como se não bastasse já todo este acumular misantropo de emoções, chegou o segundo clímax. Pilar del Río afirmava com orgulho espelhado na sua face que admirava Saramago por se conseguir entender com os jovens pertencentes aos movimentos anti-globalização. Estava dado o mote para o chorrilho que se aproximava. A partir daqui foi sempre em movimento descendente, qual bola de neve rolando por inevitável encosta de declive acentuado. A globalização impiedosa, a exploração do capitalismo selvagem, o lucro obsceno das grandes empresas, a economia desumana, os interesses económicos. Lugares-comuns perfeitamente gastos, correntes e com um historial já mais que centenário mas que, por alguma razão imperscrutável, continuam a ser vistos como uma visão provocadora e contrária ao sistema, para além de inovadora e refrescante.

Uma coisa é bem certa. Saramago, mesmo quando não está presente ou a fazer observações sobre a inutilidade da informática, faz questão de enviar a sua esposa como emissária especial da sua palavra divina para que ninguém sinta a sua falta e passe um serão risonho em companhia da exposição dos princípios filosóficos de algo perfeitamente congruente e fascinante como o comunismo individualista - o tal que nega a privacidade por ser imoral, ao mesmo tempo que recusa normas sociais conservadoras e reaccionárias impostas, que quer promover a cidadania, a entreajuda e o humanismo, quando se recusa a aceitar tudo aquilo que faz parte da natureza humana, e que rejeita todo e qualquer passado ao mesmo tempo que não consegue sequer dar um passo sem ele.

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