Um dos argumentos mais utilizados para refutar a ideia de que o orçamento proposto pelo PS não deveria ter sido aprovado na Assembleia é o de que a inexistência imediata de um orçamento de Estado para 2011 provocaria incerteza dos mercados financeiros em relação a Portugal e uma crise política, com a demissão ameaçada do governo, o que, por sua vez, conduziria a uma incerteza ainda maior, e, consequentemente, a um agravamento da crise económica. Este argumento é muito bonito e foi utilizado durante muitas semanas, mas sempre teve bastantes buracos:
1 - Para começar, esquece implicitamente que *já* existia uma grande incerteza acerca de Portugal nos mercados financeiros. Para que este argumento fosse aplicável, seria necessário não só mostrar que a incerteza decorrente de uma não-aprovação seria maior, como que isso seria particularmente relevante a médio prazo - a grande razão pela qual os juros pedidos pelos credores do estado português são tão elevados é o facto de que o estado português tem vindo a gastar demasiado dinheiro de forma insustentável. Um governo frugal com um orçamento credível em propostas de redução de despesa estatal não precisaria de se financiar (tanto) nos mercados internacionais, sendo isto, por si só, uma forma de reduzir o risco de incumprimento e, consequentemente, as taxas de juro exigidas de cada vez que o governo português decidisse vender dívida.
2 - Este argumento pode ser utilizado para qualquer situação em que um governo que deseja aprovar um orçamento, seja ele bom ou mau, porque ninguém sabe que orçamento (e algumas vezes, governo) surgirá de seguida, se o primeiro não for aprovado - o que gera incerteza entre os investidores. É, portanto, impossível medir a qualidade de um orçamento apenas pela incerteza que uma recusa em aprová-lo geraria nos mercados financeiros, uma vez que a única coisa que a estes importa é saber se o governo se encontra em condições de conseguir pagar as suas dívidas. A ausência de um plano para o fazer alimenta sempre a incerteza sobre o futuro.
Qualquer argumento que pode ser tão flexivelmente utilizado a favor de algo e do seu oposto não é muito cogente porque não permite distinguir entre os dois e pode ser rotineiramente utilizado para aprovar orçamentos objectivamente maus. Para ilustrar esta ideia, basta relembrar que desde o início da crise até ao primeiro semestre deste ano se tem vindo a ouvir o primeiro-ministro e a sua clique a afirmar que os orçamentos bons (leia-se, "considerados bons pelo governo") eram os expansionistas porque nos livrariam da crise económica. Quando os mercados internacionais começaram a perceber que o governo português não tinha nenhum plano sustentável para cumprir os pagamentos da dívida pública, os orçamentos considerados bons pelo governo passaram a ser os "realistas" e austeros (do género sugerido por Manuela Ferreira Leite na campanha eleitoral anterior, e que pelo qual sempre foi vilipendiada pela PS). Num curto período de tempo, orçamentos maus com propósitos diametralmente opostos foram considerados ideais pelo mesmo governo.
3 - O governo esteve sistematicamente a tentar colocar Passos Coelho entre a espada e a parede, avisando acerca dos perigos que decorreriam de uma eventual falha em aprovar este orçamento. Esta é a marca clássica de um mau governo. Se um governo minimamente competente estivesse confiante num orçamento satisfatório e este fosse satisfatório também para qualquer observador externo, não haveria necessidade de tentar acusar a oposição de maneira antecipada para utilizar o argumento da estabilidade política como forma de chantagem. Esta é uma das razões pelas quais
continuou a especulação com a dívida portuguesa: se fosse assim tão evidente que o risco de incumprimento é reduzido, não haveria forma de especular. No passado mês de Outubro ouviu-se o governo de Sócrates ameaçar que o país mergulharia no caos se este orçamento não fosse aprovado, que o governo aguardava uma tomada de decisão suficientemente responsável do PSD para aprovar o OE e, mais recentemente, que o PSD só estaria a planear viabilizar o orçamento
porque não tem alternativas reais para o país e
não pretende governar neste momento. Esta panóplia de argumentos assegurou que,
independentemente da decisão da bancada social-democrata, o governo já tinha um argumento para lavar as mãos, fosse culpando o PSD por não aprovar o OE, provocando uma crise política, ou por aprovar o orçamento, o que implicitamente significaria que este é o único orçamento possível, totalmente inevitável, e que ninguém nas mesmas circunstâncias conseguiria fazer melhor.
Com o país à beira de implodir, o governo esteve e está permanentemente preocupado em fazer jogos políticos e assegurar estrategicamente uma imagem impoluta perante o eleitorado. Se eu fosse um investidor internacional com conhecimento da situação portuguesa, estaria muito preocupado e preferiria colocar recursos na Geórgia ou em Chipre a enterrá-lo aqui. Digamos que não é muito surpreendente que, mesmo depois de o orçamento ter sido aprovado na assembleia, as taxas de juro exigidas para a compra de dívida estatal tenham continuado a subir até atingirem sucessivos
máximos históricos.
4 - Não há qualquer razão para julgar que este é um governo capaz de executar um orçamento, ainda que este fosse aceitável. A situação do país chegou a este ponto precisamente porque a pessoa que está à frente deste governo não teve carácter suficiente para ser realista e honesta em nenhum ponto das duas legislaturas, ou sequer a coragem política de efectuar os cortes necessários na despesa estatal. Não há razão para acreditar que este governo deixou subitamente de ser socialista e incompetente. Na verdade, eventos como o
aumento da despesa estatal até Setembro, quando o governo já andaria, supostamente, a tentar sinalizar aos mercados o seu compromisso com o acerto das contas do Estado, ou a derrapagem da despesa estatal em relação ao orçamento previsto para este ano -
em quase dois mil milhões de euros - são excelentes indicadores de que o mais provável será que a despesa
real não estará controlada em 2011 e não corresponderá às expectativas que o governo gostaria que os investidores tivessem.