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Thursday, January 05, 2006

Grunhidos na bruma II

oGrunho O [Dr.] Rui Martins parece ter gostado bastante da minha resposta, ao ponto de ter comentado extensamente aquilo que eu havia dito relativamente ao Blasfémias. Como já consegui sair da fase de pós-trauma psicológico em que entrei, após ter descoberto que, afinal, o Dr. Rui Martins não era presa fácil, deixo aqui a minha resposta, ainda abalado por tão recente choque. E eu que até já tinha preparado as minhas crias para comer esta semana. Raios.

1.

* Obviamente que o liberalismo não detém a exclusividade da defesa da liberdade. Aliás, essa monopolização seria contrária aos seus princípios. Como é evidente, todos defendem a liberdade. Os comunistas defendem a liberdade de se tornarem donos de todas as propriedades do país. Os fascistas defendem a liberdade de controlar a economia e os nazis, provavelmente, defendem a liberdade de mater judeus à descrição. Peço desculpa, quando disse defender a liberdade, referia-me mesmo à liberdade. Não nos deixemos enganar. Os socialistas clássicos, num regime que não lhes é favorável, aparecerão sempre como mártires, à semelhança dos comunistas durante o período salazarista. Com estas distorções a fazer lembrar newspeak, até podemos dizer que é natural que um nazi morresse na URSS por "defender a liberdade". Qualquer ideologia política, independentemente da veracidade dos seus postulados, defende sempre a liberdade de expressão relativa a si mesma. Isso não significa que defenda a das outras, coisa acerca da qual o liberalismo não faz distinção.


2.

* Uma chalaça que não tem coerência e sentido falha o seu objectivo mais evidente. Ou então, tem como público-alvo aqueles que não têm capacidade de detectar as suas contradições lógicas. É um pouco como ver um filme em que o som se propaga no espaço como se existisse matéria; estraga a sessão. Por outro lado, o objectivo pode ser puramente denegrir a imagem de qualquer coisa junto daqueles que não estão bem informados. Talvez seja esse o caso.


3.

* Os habitantes da Utopia de Thomas More dificilmente poderiam ser humanos. Por isso é que a obra tem o nome de Utopia.


4.

* O facto de um filósofo, ou qualquer outro ser racional, questionar algo não significa que esse aspecto seja ou não necessariamente verdadeiro. Os próprios filósofos são conhecidos não por dar respostas mas sim por fazer perguntas. Logo, dizer que há filósofos que questionam a existência de direitos naturais é completamente irrelevante. Também há filósofos que questionam a própria existência do Universo. Anaxímenes de Mileto dizia que o ar existia em tudo. Como a ciência viria a provar, Anaxímenes tinha era ar a mais no cérebro.

* Os seres humanos têm direitos assim como os outros animais têm. A possibilidade de discutir esta existência a um nível intelectual, caso dos humanos, não invalida que estes não possam existir com referência a espécies que não tenham capacidades para o fazer. Se os direitos naturais não fossem uma realidade, mas sim resultantes de uma eventual imposição artificial, poderíamos entrar livremente na toca de diversos animais sem esperar ser atacados. Ou tentar matá-los, o que deveria suceder com facilidade. Ora, como isso não acontece e não me parece que os lobos, ursos, etc. tenham filósofos entre eles como Locke para os "enganar", dizendo que eles têm direitos naturais (incluindo o de propriedade), a minha única conclusão possível é a de que os direitos naturais realmente existem, independentemente do seu reconhecimento por parte dos seres humanos.

* Não adianta comparar os direitos naturais dos humanos aos das formigas já que a constituição genética destas duas espécies é bastante distinta, o que origina diferentes comportamentos sociais. Isso não significa que as formigas, as abelhas e os chimpanzés não tenham os seus direitos naturais que, como é óbvio, podem ser ou não respeitados pelas outras espécies.


5.

* Não sou dono de nenhuma "Verdade" nem nenhuma pessoa o é. No entanto, quando se fala deste Universo é necessário entender que se fala deste Universo e não de outro ali ao lado (dispensam-se anotações sobre o oximoro). E, certamente, estas conclusões acerca da realidade partem de uma base sobre raciocínios lógicos, não de um "dogma". A "tese" de que a intervenção do Estado é sempre má é a conclusão, não a premissa. O Rui Martins ataca a existência de dogmas (que, de alguma forma, vê existirem na ideologia liberal) mas depois acaba por dizer que nem todos os dogmas são maus e que alguns até são essenciais. Nesse caso, qual é o critério geral usado para escolher os "bons dogmas"? Quem tem autoridade para escolher que dogmas devem ser aplicados? Porque é que o liberalismo, que não tem um manual de instruções com uma receita para a sociedade, constitui um dogma, quando para cada problema, não há uma solução central definida? Na sua análise dos factos, apenas vejo razão para criticar os dogmas socialistas do proteccionismo e da existência de impostos, já que estes evidenciam racismo/xenofobia e um agrado quase sádico pelo sofrimento alheio. Relativamente à questão do dogma em si, pela mesma ordem de ideias, podemos dizer que a existência de interacções electromagnéticas também constitui um dogma.

* Se eu não permitisse que o que eu digo fosse questionado não estaria a tentar explicar-lhe coisa alguma. Os dogmas não podem oferecer explicação, por isso mesmo é que são chamados de dogmas. A posição dogmática não é, por excelência, falar de uma constatação da realidade. Um dogma não tem base experimental. A constatação da realidade tem. Se, porventura, afirmarmos que a realidade é dogmática por si mesma, então tudo é um dogma e nada faz sentido na realidade. Nestes casos, um solipsista/idealista mais coerente tenderá a suicidar-se já que nem sequer encontra "indícios de provas" para a sua própria existência.


6.

* Não existem sociedades perfeitas porque o mundo não é perfeito nem nunca será. Dizer que um país deveria ser uma utopia porque teve (ou tem) um regime liberal pouco sentido faz porque o liberalismo, contrariamente a ideologias como o colectivismo ou o fascismo, não tem como objectivo propagandístico fazer algo em prol da "felicidade e bem-estar" da sociedade. Em termos práticos, é sempre em prol dos grupos que pertencem às instâncias governativas e aos beneficiados com as decisões destes mesmos. O que o liberalismo faz substancialmente é melhorar a qualidade de vida das pessoas pelo aumento da sua liberdade e pela possibilidade de produzir riqueza.

* O Rui Martins critica o nível de exploração que há, por exemplo, na China mas esquece-se que a China é um país que durante décadas esteve sobre jugo comunista, o que levou milhões de pessoas à morte e à pobreza extrema. Ora, isso pouco tem que ver com o capitalismo. Se começar a defender o irrealista "direito" dos chineses em não serem "explorados", estará a condená-los à manutenção de uma situação de pobreza contínua da qual não terão chances de sair. Eles certamente preferem trabalhar em condições horríveis e durante muitas horas para aliviar a sua condição praticamente insustentável. Com o passar do tempo, o nivel médio de vida destas populações e as suas qualificações aumentarão, o que conduzirá a uma redução dos números de trabalhadores a receber um salário quase insignificante em troco de extensivas horas de trabalho. Tendo em conta o enorme fluxo de gente proveniente do restante território chinês, o trabalho infantil que possa existir em Hong Kong não é muito surpreendente. Aquilo em que o Rui deveria pensar é a razão que levou e leva toda esta gente a fugir para Hong Kong (e de HK, quando a passagem para a administração chinesa se aproximava):

i) Legal immigrants from China

Since 1980, immigration from the Chinese mainland to Hong Kong was subject to tight control. A strict quota was set on the number of Chinese permitted to settle in the territory. The number was originally limited to 75 per day. It was gradually increased to 105 in 1994, and then 150 in 1995. Therefore at present, there is an annual inflow of about 55,000 legal immigrants from China, most of whom are actually dependents of Hong Kong residents living in the mainland and coming to the territory for family reunion.

(...)

v) Illegal immigrants

A total of 35,500 illegal immigrants from China were arrested and deported in 1994. The number had decreased as compared with a total of about 44,000 in 1993. When captured upon entry, they are immediately deported. If they are caught later when engaged in illegal employment, they are liable to 15 months in prison and fines of up to HK$5,000. Because of the stringent control, the size of the illegal immigrant population in Hong Kong is believed to be relatively small, probably not more than 20,000 at any one point in time.

* Políticas fixas quanto a salários baixos, trabalho infantil e horários laborais não fazem parte de um modelo liberal. Segundo a tal "doutrina liberal", devem ser as pessoas a determinar isso, não as administrações estatais. Para que não diga que isto se trata de um dogma, eu posso tentar explicar-lhe isso em pormenor se não entender porquê.

* Um monopólio não é necessariamente mau, se for atingido devido à aceitação que os consumidores têm pelos produtos ou serviços de uma dada empresa. Uma cartelização dos serviços numa sociedade liberal tenderia a entrar em ruptura já que, como a concorrência é livre, poderia sempre aparecer uma outra empresa que oferecesse uma melhor relação qualidade-preço aos seus clientes. Mesmo que esta empresa fosse incorporada nas corporações do cartel anterior, nada impediria que outra com o mesmo tipo de serviço reaparecesse. As empresas devem poder competir livremente pois quem mais ganha com isso é o consumidor.

(cont.)

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