Publicado, em versão adaptada e actualizada, na revista "Atlântico" em Outubro de 2005
Base de dados genética…pedida por quem?
Surpreendentemente, e apesar de ser de início uma ideia tão idiota e surrealista, o governo socialista afirma agora, pela voz de Alberto Costa, que efectivamente planeia encaminhar a nefasta e infortunada ideia de criar uma base de dados genética em Portugal cuja polémica já havia sido desvendada pelo anterior executivo.
Para quem nunca ouviu falar do assunto, é fácil explicar. O ADN (ácido desoxirribonucleico) é algo que, sendo comum a todos os seres humanos, distingue cada um deles devido à sua complexidade. Existe uma estrutura comum a cada uma das espécies mas, no seio de cada uma delas, existem pequenas variações que fazem de nós indivíduos distintos. Uma vez que somos todos diferentes isso significa que temos um ADN distinto, sendo a única excepção a dos gémeos homozigóticos (correntemente designados “gémeos verdadeiros”), o que permite identificar cada um de nós, através de uma técnica conhecida como DNA fingerprinting, com um nível de precisão estatisticamente infalível.
A minha intenção não é a de dar uma palestra de biologia molecular ou genética e, por essa mesma razão, não irei aprofundar mais sobre o assunto já que esta é a informação básica estritamente necessária.
O rufo dos tambores
A ideia da base genética de dados é simples – reunir uma amostra do código genético de cada cidadão para que este fique arquivado nos ficheiros governamentais. A última confirmação desta barbaridade foi publicada no Diário Económico de 04/07/2005 (segundo fonte do Diário Digital)
Alberto Costa: «Base de dados genética é ponto assente»
O ministro da Justiça, Alberto Costa, garantiu, em entrevista publicada na edição desta segunda-feira do Diário Económico, que o projecto da base de dados genética é «ponto assente» e vai ser «implementada de uma forma faseada e gradualista».
Recordando que a base de dados «faz parte do nosso programa», o ministro da Justiça garante que a sua implementação acontecerá «de uma forma faseada e gradualista», até porque as suas finalidades são algo «diversificadas».
«O domínio da investigação criminal é que é prioritária e também por razões financeiras não podemos pensar numa forma mais abrangente», conclui Alberto Costa.
Sobre este preciso assunto tinha sido já publicado anteriormente um outro artigo de Elsa Costa, intitulado Base de dados civil propriedade do Estado, no Diário de Noticias que o discutia em maior pormenor:
Base de dados civil propriedade do Estado
Governo quer perfil genético de todos os cidadãos para usar na investigação forense
O Governo vai criar uma base de dados genética de identificação civil que abrangerá toda a população portuguesa e que será utilizada na investigação criminal. Ou seja, actualmente cada cidadão tem a sua impressão digital num arquivo central, a partir daqui também o perfil genético será incluído numa base de dados, para ser comparado com amostras biológicas recolhidas nas cenas de crime.
Esta proposta – um modelo que não é usado em nenhum país europeu – está a gerar forte discussão nos meios científicos, académicos e judiciais sobre os critérios de inclusão de pessoas numa base deste tipo. Há quem defenda que nesta seja apenas incluída informação sobre condenados, há quem receie a ausência de confidencialidade e o acesso ilegítimo dos dados.
Do gabinete do ministro da Justiça garantiram ao DN que este é um "objectivo a cumprir nesta legislatura" e é mesmo "uma das primeiras prioridades" da acção governativa, estando já Alberto Costa a trabalhar no assunto.
Não é a primeira vez que a constituição de uma base de dados genética com fins de investigação criminal está em cima da mesa, mas é novidade o facto de abranger toda a população portuguesa. Projectos anteriores consideraram a hipótese de incluir apenas perfis genéticos de pessoas condenadas pela prática de crimes. Esta é, por exemplo, a posição de Francisco Corte Real, investigador do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). Mas outros cientistas da área forense, como António Amorim, do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, defendem o modelo apresentado pelo Governo, considerando que a sua eficácia aumenta significativamente.
Este investigador reconhece que o conceito de base de dados genética informatizada pode assustar, pela possibilidade de acesso ilegítimo a uma informação tão sensível, mas recorda que já existem "bases de dados para tudo e mais alguma coisa". Por outro lado, "é um preconceito achar-se que é mais fácil piratear um sistema informatizado".
Todas as instituições que trabalham já no campo da genética, nomeadamente em investigações de paternidade, têm as suas bases de dados. Mas, como não há regulamentação sobre esta matéria, há muita informação que não está a ser usada, por exemplo, para informar o tribunal de que, afinal, o potencial pai é outro sujeito que foi submetido a testes em outro caso.
Um registo deste tipo, explica ainda António Amorim, abre portas à inversão do actual método de investigação criminal, que primeiro escolhe os suspeitos, para depois os submeter a perícias "Agora será possível indicar à polícia os suspeitos." Quantos aos custos necessários para criar uma base deste tipo, o investigador questiona: "E quanto se gasta com os métodos tradicionais."
A inclusão de toda a população é essencial para António Amorim, já que a restrição aos condenados constitui uma limitação da eficácia deste dispositivo "Se já está condenado, está na cadeia, logo não comete outros furtos ou crimes." Assim, garante, "a única utilidade de uma base, para maximizar o investimento, é cruzar a identificação civil com o criminal".
Francisco Corte Real defende uma base mais conservadora, que inclua apenas condenados. A sua utilidade seria "em crimes de tendência repetitiva" ou nos que "deixam material biológico, como os de natureza sexual". As experiências norte-americana e britânica (com uma base menos restrita que o modelo que defende), mostram "um sucesso muito grande na prevenção da criminalidade", impedindo uma escalada na dimensão da transgressão. O responsável do INML, tal como António Amorim, garante que existe já muita informação genética nos laboratórios e que "até já se poderia ter criado um programa informático para cruzar os dados se fosse legal", defendendo que "há várias formas de criar bases. O importante é que se avance."
Elsa Costa e Silva
O porquê e as falácias
A julgar pela urgência que Alberto Costa, ministro da Justiça, demonstra em querer cumprir esta ideia – que diz ser uma “primeira prioridade” – podemos questionar-nos acerca de que outros objectivos orwellianos terá o actual executivo em funções. Não é de admirar que alguns especialistas de Direito e vários cientistas se tenham revoltado contra a questão já que deverão conhecer muito bem o que significa esta realidade. A verdadeira estupefacção em todo este projecto reside no facto de que os portugueses parecem não se incomodar com as ideias do governo em catalogar completamente o mapa genético da população para propósito de identificação. Não se trata de um estudo académico para determinar as origem e evolução genéticas dos seres humanos do oeste da península ibérica mas sim recolher informações sobre todos eles para que o Estado – com a desculpa da base de dados para protecção judicial – possa ter sob a sua guarida todos os dados acerca dos cidadãos.
A questão centra-se em torno do que o Estado acha ser plausível já que ninguém parece contestar a ideia. Não me surpreenderia que o executivo decidisse apostar em plebiscitar os eleitores relativamente a este tópico. Certamente haveria uma campanha cerrada a favor do “sim” e, caso as primeiras sondagens apontassem para que as pessoas fossem dizer “não”, (probabilidade próxima de 0% tendo em conta as reacções que simplesmente não existiram até agora) Sócrates diria apenas que como tem a maioria absoluta (i.e., eleito pelo povo) não existiria necessidade de referendar algo para o qual o governo tem toda a autoridade necessária, já que o partido socialista havia sido eleito democraticamente e tinha todo o direito de fazer o que achava melhor para a nação. Aquelas manhas diplomáticas do costume. Na verdade, o que é muito mais provável ainda é que ninguém sugira uma consulta ao país mas sim que siga em frente com o projecto porque, como deve ser óbvio para todos, um decreto-lei que permita ao Estado deter em sua posse tudo aquilo que faz de nós indivíduos é completamente irrelevante comparado com eleições para os parlamentos europeus, constituições europeias e leis de interrupções voluntárias da gravidez. Completamente irrisório, sem importância alguma. É apenas o Estado a saber as doenças para as quais temos propensão, a eventual grossura dos nossos cabelos e a potencialidade das nossas capacidades intelectuais, em teoria. Claro que nada de importante e, de forma alguma, assustador.
É quase preocupante ver que cientistas como António Amorim praticam a sua profissão sem um mínimo de responsabilidade cívica e respeito pela privacidade alheia pois aqueles que detêm o conhecimento sobre a matéria deviam ser os primeiros a revoltar-se contra a situação. Pelo contrário, não só Amorim deixa claro que concorda com o projecto apresentado pelo governo como também tenta demover eventuais críticas que possam ser feitas a tal sistema incorruptível e sério que é uma base de dados genética a nível nacional:
1.” (…) já existem "bases de dados para tudo e mais alguma coisa (…)”
Esta afirmação, quando usada para justificar algo, é tomada como uma simples falácia ad numeram. Se existem muitas outras bases de dados para tantas outras coisas porque não criar mais uma? Já agora, podíamos também criar uma base de dados sobre o tamanho das unhas dos pés dos cidadãos já que há bases de dados para tudo e mais alguma coisa. Deveras lógico.
2.” (…) é um preconceito achar-se que é mais fácil piratear um sistema informatizado (…)”
Mesmo que se considere que seja mais difícil piratear um sistema informático isso não significa que seja impossível. O argumento de que os dados estariam seguros simplesmente não faz sentido já que temos que confiar na “boa vontade” dos empregados estatais que moveriam esta informação. [1] Os mais distraídos que não comecem a tentar esgrimir o argumento de que em mãos de privados não estariam melhor. Ninguém está a falar de “privatizar” bases de dados genéticas. Elas simplesmente NÃO devem existir e se alguém, por qualquer razão, decide ceder os seus dados a uma instituição deve ser por opção sua, como no caso de empresas de rastreio de historial genético [2]. O assunto aqui consiste numa base de dados obrigatória, forçada pelo Estado.
3. " (…) Agora será possível indicar à polícia os suspeitos (…) "
É notável a honestidade com que Amorim evidencia a verdade. Ironicamente acaba por se descair e revelar que todo o projecto, afinal, tem pés de barro. Diz Amorim que é possível indicar os suspeitos (e não os criminosos). Com isto, Amorim acaba por mostrar indirectamente que a base de dados, ainda que por alguma eventual acefalia colectiva fosse justificável, não introduziria nenhuma melhoria directa e infalível sobre grande parte dos crimes. Então e se as amostras de ADN tivessem sido mal etiquetadas aquando da sua recolha? Com 10 milhões de amostras para manejar é perfeitamente plausível considerar que existe algum erro de sistematização. Imagine-se o seguinte caso: existe um assalto à mão armada feito no banco X e um dos assaltantes deixa para trás algo que o possa identificar geneticamente, por exemplo, vestígios de pele morta no pulso de uma pessoa que o assaltante tinha usado como escudo humano. A polícia recolhe o ADN e compara-o com a base de dados descobrindo que o suspeito é o senhor Y. Prendem o senhor Y e, assumindo que lhe fazem novos testes sanguíneos para confirmar a “prova”, vêm a descobrir que as amostras de ADN não coincidem. Pois bem, o ADN havia sido mal etiquetado no laboratório e agora não se sabe a quem pertence. Apenas se sabe que não é do senhor Y e pode muito bem ser de qualquer um dos outros 10 milhões restantes. Com este pequeno exemplo se demonstra que a base genética de dados, mesmo que implementada, nunca seria infalível por si própria. Por outro lado, os crimes de natureza psicológica ou de cariz económico nunca poderiam ser justificados com amostras de ADN já que – infelizmente, dirá talvez Alberto Costa – as notas de 5 euros não ficam com o registo genético de todas as pessoas por quem passaram nem as pessoas possuem detectores biónicos no cérebro que enviam sinais ao Estado quando se tem um pensamento criminoso.
4.” (…) E quanto se gasta com os métodos tradicionais? (…) "
Ao ler esta parte quase fiquei com a impressão de que Amorim faria uma excelente carreira em política. Comete falácias soberbamente, inventa realidades paralelas e, como se não fosse suficiente, deseja reprimir a privacidade do cidadão. E ainda costumam dizer que os cientistas são seres humanos dotados de maior capacidade de raciocínio.
Recolher amostras de ADN de toda a população seria certamente um processo não dispendioso para Amorim mas sim para os contribuintes. Em última instância, são sempre eles que financiam todas as acções do Estado. Seria necessário questionar se o sistema de bilhetes de identidade funcionaria em paralelo com a base de dados genética ou este acabaria por ser abolido. Se a resposta for “não” então seriam financiados dois sistemas em paralelo (uma carga fiscal ainda maior, como se a que já existe não fosse suficiente), caso a resposta fosse “sim” todos os sistemas de identificação nacional teriam que ser modificados para acomodar uma identificação biométrica, com máquinas que pudessem ler os nossos traços genéticos para os comparar à base central de dados. Isto inclui reequipar todas as instalações que exigissem uma identificação.
Por isso, quando Amorim usa o argumento de que os métodos tradicionais ficariam mais caros certamente está só a pensar na questão mínima relacionada com as investigações criminais. Estes custos apenas podem ser resolvidos com a privatização e profissionalização total das forças policiais que continuam a ser acarretados pelo Estado, não existindo qualquer forma alternativa de impor as leis (assumindo que são justas e correctas) uma vez que o Estado detém o monopólio do uso legal da força.
5. " (…) Se já está condenado, está na cadeia, logo não comete outros furtos ou crimes (…) a única utilidade de uma base, para maximizar o investimento, é cruzar a identificação civil com o criminal (…) "
Mais uma ironia interessante. Para maximizar as possibilidades de encontrar o criminoso com sucesso a única forma de implementar este sistema é aplicando-o a todos os cidadãos, o que os rotula indirectamente de “potenciais criminosos” à nascença. É um sistema humano, ético e, sem dúvida, extremamente justo.
Muitos críticos irão sugerir, depois dos atentados de Londres, Madrid e Nova Iorque, que a necessidade de uma identificação nacional é mais do que necessária. A isso é possível responder claramente que Espanha tem um sistema de identificação nacional – Documento Nacional de Identidad – semelhante ao português e isso não evitou os atentados terroristas de 11 de Março que vitimaram 191 pessoas e fizeram 1460 feridos. De facto, quando estamos a lidar com grupos que se sujeitam ao suicídio para consumar os seus actos não existe nenhuma forma de controlar as suas intenções através de potenciais identificações já que para que se evitassem situações destas seria necessário controlar igualmente o pensamento das pessoas. A questão da identificação nacional em si ficará para outra ocasião já que o tema central é especificamente a base de dados genética em Portugal.
Uma questão de ética
As primeiras desculpas que sempre se ouvem quando existe o desejo de implementar um sistema que criaria uma ruptura na sociedade são acompanhadas de pedidos de calma e de explicações pausadas e longas acerca de como uma transição seria gradual e suave. Foi assim com a moeda única e foi assim está a ser com a Constituição Europeia. Com o euro existiam campanhas, não de esclarecimento mas sim de promoção da nova moeda (quem não se lembra daqueles anúncios na televisão do senhor que dizia “É o euro!” e depois esclarecia, muito ao de leve, que não havia que ter medo porque era uma moeda forte e servia os interesses de Portugal, com muita confiança) e, felizmente para os diplomatas europeus, a transição foi feita com bastante suavidade em países como Portugal embora em países como a Holanda, por exemplo, o aumento das taxas de inflação tenha sido associado à introdução da nova unidade monetária. Com a Constituição Europeia, a União Europeia cometeu o erro de apressar as coisas (felizmente para todos nós) e enrolou-se numa série de tratados que têm vindo a substituir o Tratado de Roma original que, não estando ainda completamente implementados, estariam já em vias de ser tornar obsoletos com o novo documento a aprovar. No entanto, não foi por isso que não se denotou o desespero do governo francês que necessitava aprovar a constituição à força e lançou campanhas em larga escala de forma a enviar correio “esclarecedor” para todos os franceses, incluindo o tratado completo (com as suas centenas de páginas) e um panfleto publicitário menor que, obviamente, se limitava a fazer o reparo de que a constituição era uma coisa boa para a França e para os franceses, etc., etc., em resumo, pura propaganda paga pelos próprios contribuintes já que os partidários do “Non” não tiveram esse benefício, uma vez que não faziam parte do governo.
À semelhança destes casos, Alberto Costa apazigua os cidadãos afirmando que será “implementada de uma forma faseada e gradualista” para que não haja uma contestação geral, para que os cidadãos não entendam o que lhes está a acontecer e para que os cidadãos, a pouco e pouco, vão aceitando a nova realidade que se lhes impõe, vindo posteriormente a aceitar o novo sistema sem reclamações – assim como quase ninguém questiona a existência de um arquivo de identificação simplesmente porque foram levados a crer que necessitavam dele. Não houve nenhum grupo social que se manifestasse para a obtenção de algo deste género e, mesmo que assim tivesse acontecido, nunca seria uma parcela relevante da sociedade. Então por que razão decidiu o governo inventar uma nova secção nos departamentos da administração interna? A resposta é simples: para ter mais uma desculpa para sobrecarregar os cidadãos com impostos desnecessários e obter cada vez mais um controlo exímio sobre as vidas dos seus mesmos contribuintes. Para aqueles que estão menos familiarizados com os assuntos da ciência é este o novo tipo de ditadura que os meios científicos põem ao serviço do Estado – o lugar-comum das obras de ficção científica, o conhecimento que cai em mãos erradas.
Analisemos a questão no seu âmago. O Estado quer possuir a informação genética de cada pessoa. Atrever-me-ia a perguntar novamente a justificação mas como estas são simplesmente ilógicas, centremo-nos nas razões pelas quais esta base de dados é um desrespeito dos direitos básicos e civis. Quem é o Estado para possuir esta informação e para a arquivar? Em nome da protecção do cidadão cometem-se as maiores atrocidades sociais que são, na verdade, precisamente opostas àquilo a que se propunham ser. Ceder a informação do código genético a alguém é como mostrar como somos por dentro, incluindo potenciais fraquezas que nunca se tenham manifestado ainda. A cedência de algo tão único permite, aos possuidores da informação, efectuar escolhas com base no perfil genético de uma pessoa, por exemplo, criando um novo tipo de discriminação genética já que o Estado (leia-se, empregados dos Estado) teria conhecimento das doenças presentes (ou potencialmente futuras) do indivíduo em questão. A informação que inicialmente servia, teoricamente, para proteger o cidadão acaba por se virar contra si mesmo.
O ser humano tem – por defeito – direito à privacidade e, pela implementação deste sistema, o Estado deseja simplesmente acabar com essa cláusula constitucional. A divulgação de um dado tão específico viola tanto a intimidade da pessoa em si como a de toda a sua família já que o código genético é hereditário. Não adianta demonstrá-lo por via do sistema legal porque a própria lei podia desrespeitar os direitos individuais (já o faz em alguns casos) mas, ironicamente, as leis que protegem o cidadão desta recolha massificada de informação privada existem, tanto a nível internacional como nacional:
Artigo 16.º
(Âmbito e sentido dos direitos fundamentais)
1. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.
2. Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA PORTUGUESA
VI REVISÃO CONSTITUCIONAL [2004]
Artigo 12°
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.
Igualmente se podem mostrar artigos expressos na, citando a Ordem dos Advogados, “ (…) Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (1) [que] é muito clara nos seus artigos 1º, 2º, 5º e 10º e, sobretudo, nos seus artigos 1, 2º e 5º, 10º, 11º e 12º e 26º e 27º (…)” da qual passo a citar os excertos mais significativos: [2]
Artigo 5º
Regra geral
Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido.
Artigo 10º
Vida privada e direito à informação
1- Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde (…)
A legislação, como quase sempre, comete o erro de tentar proteger em simultâneo o lesado e o perpetrador, em detrimento do lesado. Neste caso, de acordo com a lei, o cidadão necessita dar o seu consentimento para que qualquer acção no campo da saúde possa ser tomada. Se o Estado planeia criar uma base de dados que abranja toda a população isso significa que necessita de a tornar obrigatória, caso contrário esperaria pela “boa vontade” dos portugueses em ceder os seus dados livremente (coisa que não me espantaria, dado o nível de “distracção” dos portugueses). Pela comunicação de Carlos Pinto de Abreu, Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, cuja ligação aponto acima, é possível entender que a legislação protege e tenta resguardar igualmente os dados que estejam em posse de outrem. Para isso especifica que são puníveis desleixos de manuseamento, utilização secundária dos dados obtidos, cedência a terceiros, tentativas de discriminação, etc. Os mais crentes no paternalismo estatal e na invenção do “Estado de Direito” gostarão agora de dizer que a lei está lá e por isso estamos todos protegidos. A realidade, caros crentes, é que as “leis existem para serem quebradas” caso contrário, nunca existiriam homicídios, genocídios, violações, furtos e outros, simplesmente porque estão previstos no código penal. Não há nenhuma forma de garantir que não haverá manipulação dos dados quando eles estiverem na posse de outro que não o seu legítimo dono. Não existe nenhuma forma de assegurar que os dados serão utilizados por entidades isentas ou que não serão acedidos ilegitimamente. Em último caso, não existe nenhuma garantia de que o nosso património genético será tratado com ética e dignidade pelos responsáveis. A única solução para isto é não permitir que o Estado se torne um arquivo público dos corpos dos cidadãos.
A decisão está nas suas mãos
Cada pessoa tem direito à sua privacidade, como já referi anteriormente. É algo incontestável. Uma tentativa de violação deste direito básico que é inerente ao ser humano constitui, indubitavelmente, um crime. A informação genética que nos identifica como seres únicos e individuais é uma propriedade privada cuja protecção deve ser apoiada pela legislação. O único que pode decidir o que fazer com o seu registo de ADN é o próprio individuo, não uma entidade que deseja obrigatoriamente recolher e arquivar informações privadas utilizando argumentação falaciosa e desrespeitadora dos direitos humanos. Como é mencionado nos artigos de imprensa anteriores, este projecto é inovador a nível mundial. Talvez porque os outros Estados saberiam que os seus cidadãos se revoltariam ou talvez, simplesmente, porque nunca lhes ocorreu. Os portugueses já são forçados a ceder ao Estado informações relativamente ao seu local de nascimento, filiação, idade, sexo, aspecto, impressões digitais e até altura. Paralelamente somos também obrigados a declarar os nossos rendimentos, a nossa situação académica e o nosso estado civil, para conhecimento do Estado. Com a criação de uma base genética de dados, o Estado ficaria igualmente na posse da informação genética. Que virá a seguir? Uma base de dados com o comprimento do cabelo e da barba com o argumento de uma identificação facilitada em caso de assalto? Quem é o proprietário das informações? A pessoa ou o Estado? Quem controla a sua vida? Você ou o Estado?
Cabe-lhe a si, apenas, compreender que estão a querer violar os seus direitos e fazer outros compreender a mesma questão. O Estado quer mas os cidadãos não são forçados a obedecer a menos que sejam cegamente cumpridores de uma directiva que apenas os prejudica. Lembre-se: é cada um de nós que deve decidir como restringe a informação sobre si próprio porque tem o direito de dar a conhecer o que quer que se saiba e omitir o que quer que não se saiba. Não espere que o Estado o defenda a si. Defenda-se a si mesmo do Estado.
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[1] Os casos de “pirateamento informático” não são assim tão raros. Veja-se por exemplo o caso da University of Southern Califórnia que, devido a um aparente erro de programação, passou a ter disponíveis as informações pessoas dos seus candidatos, incluindo números de segurança social. Situações semelhantes haviam acontecido em candidaturas online noutras universidades americanas como University of Connecticut, Boston College, University of California at Berkeley, Georgia Institute of Technology, University of Texas at Austin, George Mason University e University of California Los Angeles. As bases de dados nunca podem garantir uma segurança de 100%. Nem uma de dados genéticos.
[2] Em casos como estes é assinado um acordo com a empresa em como o indivíduo permite que o seu código genético seja introduzido numa base de dados confidencial para comparação com outros pares de genes previamente “catalogados”. Ninguém mais tem acesso à informação e se o utilizador desejar pode requisitar a remoção dos seus dados a qualquer momento. Uma empresa que efectua este serviço é a Family Tree DNA.
[3] Base de Dados Genética – Um bem desnecessário, um mal necessário ou a mala da Pandora? Esta comunicação de Carlos de Abreu surge como necessidade de esclarecer alguns pontos acerca das bases de dados genéticas. Como seria de esperar, os pontos de vista são explícitos segundo o ponto de vista do Direito. Um bom documento para se ler de forma a compreender o que os legisladores estão a fazer (ou não) por nós. À semelhança de alguns cientistas com maior inteligência do que a necessária para manusear tubos de ensaio, os advogados parecem ser os únicos que realmente se estão a preocupar com a situação.