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Monday, October 02, 2006

O exemplo de Antuérpia

: Artigo de opinião publicado na Dia D, magazine do jornal Público no dia 29 de Setembro :

No ano de 1584, enquanto as forças do duque de Parma cercavam gradualmente a cidade de Antuérpia, os mercadores começaram a criar reservas de alimentos, antecipando a subida dos preços que se avizinhava. De imediato os líderes da cidade os acusaram de especulação e ordenaram que fossem estabelecidas pesadas penalizações para quem desrespeitasse o preço máximo por si fixado, defendendo que o seu aumento era imoral e injusto. Uma vez que este era artificialmente baixo, não houve qualquer mecanismo retroactivo que funcionasse como travão ao consumo e que respondesse à redução da quantidade de alimentos disponível, de tal forma que os habitantes continuaram a consumir rapidamente os poucos a que tinham acesso. Igualmente, durante o período de tempo em que o bloqueio se ia estabelecendo, era possível a comerciantes externos vender em Antuérpia, mas o preço a que vendiam teria certamente de compensar o risco que representava cruzarem-se com as milícias. Devido à existência de um preço que não representava os verdadeiros custos e acima do qual a venda era ilegal, os mercadores não vislumbravam um benefício quando podiam seguramente lucrar noutras localidades. A cidade foi ficando paulatinamente isolada e acabaria por capitular, rendida à fome.

Este exemplo clássico repete-se diariamente de uma forma mitigada, e por vezes imperceptível, em diversas áreas nas quais são mantidos controlos de preços, muitas vezes em forma de subsídio. A escassez de água, por exemplo, que geralmente se atribui à seca em diversas regiões, deve-se essencialmente às redes de distribuição pública de água que geram um desperdício generalizado. Na ausência de um sistema de preços geral e livre que refreie o consumo em época de míngua, financiam-se projectos de milhões de euros para a sensibilização e formação dos consumidores – com o objectivo de travar o outro desperdício artificial de outros milhões de euros que se criou – e que cujos resultados são diminutos: o apelo ao civismo é um incentivo muito ineficaz à poupança quando comparado com o pagamento de todos os custos envolvidos.

O panorama fundamental do mercado energético, onde o consumo continua a ser subsidiado através da existência de tarifas reguladas, não é muito distinto. Para além do gasto exacerbado, não havendo sinais da flutuação dos preços devido à distorção imposta, não se verificam adaptações de produção e consumo dos clientes, retardando-se assim qualquer pressão para o aumento da eficiência tecnológica ou utilização de recursos mais rentáveis. Mas ao contrário do congelamento dos preços que destruiu o incentivo ao comércio externo em Antuérpia, o subsídio a uma actividade tem um efeito ainda mais perverso – direcciona as atenções dos investidores privados dos negócios que seriam mais lucrativos e, logo, mais essenciais à sociedade, para os que são subsidiados, ampliando o efeito do parágrafo anterior.

Por que razão frisar exemplos tão simples mas constantemente esquecidos? Enquanto se continuar a ignorar que à obtenção de um bem limitado está necessariamente associado um custo e se mantiver a ilusão de que há recursos que devem ser universais e gratuitos, continuar-se-á a negar que precisamente devido a essa escassez relativa é necessário um sistema que responda às necessidades reais das pessoas e funcione como mecanismo de feedback, no qual participam dinamicamente todos os agentes económicos e se partilha informação de uma forma extremamente eficaz e quase imediata.

As políticas de intervenção estatal desta ordem conseguem ser mais nocivas do que o próprio problema original, como demonstrou o caso irónico de Antuérpia, acabando as suas tentativas de correcção, através de mais intervenção, por gerar um custo ainda superior. Se é certo que não ficaremos esfomeados, isso não significa que em contrapartida, pelo adiamento da reflexão dos verdadeiros custos, não estejamos constantemente a travar o nosso próprio desenvolvimento, a dificultar a busca de soluções eficientes para os intuitos da sociedade e a prolongar um debate essencialmente irracional acerca de como estes devem ser financiados.

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