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Sunday, September 10, 2006

Ciência e economia I

A interrogação primordial que deve ser colocada recai sobre a natureza da ciência e o seu definição, que não é geralmente unânime.

O termo ciência tem sido usado repetidamente por dois movimentos distintos de forma a flexibilizá-lo e adaptá-lo à sua realidade própria, com objectivos intencionais de ganho de credibilidade. Um deles é o grupo de cientistas provenientes das ciências naturais/físicas que, com alguma constância, se referem a outras ciências num tom depreciativo, recusando que estas sejam "verdadeiras ciências". O outro é a sua banalização – incluindo no léxico académico - para dar uma imagem de maior rigor intrínseco a algo que de metódico ou de metodológico tem geralmente muito pouco. Quem estiver interessado em testar estas afirmações deverá questionar-se sobre 2 coisas:

- o que entende um leigo por investigador cientifico ou cientista, sabendo que, na maior parte dos casos, a resposta rondará o campo de ciências como a física, a matemática, etc. e praticamente nunca o das sociais. O portal da Wikipedia sobre ciência é um bom exemplo disso. Dele constam apenas ciências físicas e aquilo que em português se costumam chamar ciências da terra e da vida.

- atentar no uso do termo ciência para designar "ciências alternativas", "ciências paranormais/ocultas" ou mesmo campos da área das humanidades como ciências políticas, ciências jurídicas, ciências literárias, humanas ou filosóficas*

A banalização do termo em si não é a questão que aborde en particular mas não é raro usar, na linguagem quotidiana, o termo ciência como referência ao conhecimento de algo ou ao apuramento da causa para um determinado efeito, o que provavelmente torna compreensível o abuso da denominação em si para vários campos académicos que não seguem uma linha de investigação cujos princípios são partilhados entre si.
A questão posterior é avaliar o teor epistemológico dos campos a que se chamam ciência (que é o tema central desta primeira entrada), a sua metodologia, e a razão que as faz diferenciar umas das outras. Qualquer ciência parte sempre de alguns pressupostos filosóficos como uma certa dose de empirismo e outras condições axiomáticas auto-evidentes que permitam assumir à partida que existe um mundo físico do qual podem ser retiradas conclusões teóricas através observações experimentais (factos) ou, pelo método contrário, confirmar a dado ponto a validade de uma hipótese teórica por meio de experiências, sempre e quando a hipótese teórica não exclua ou condicione à partida, por razões de impossibilidade técnica ou lógica, a confirmação experimental.

Tendo estas condições iniciais, a ciência baseia-se, portanto, na análise racional de dados obtidos com dois objectivos básicos: 1) adquirir conhecimento sobre a natureza do campo de estudo, compreendendo-o com a maior amplitude possível, através de um processo lógico-indutivo e 2) possibilitar a aplicação desse conhecimento adquirido em situações práticas presentes ou futuras por dedução das cadeias de eventos e previsão dos efeitos de determinadas causas.

Este género de definição abrange praticamente todos os ramos daquilo a que regularmente chamamos ciências. Particularmente as ciências naturais, que estão indissociavelmente dependentes da linguagem matemática para se exprimirem em termos quantitativos. Ciências como a física ou a química personificam na perfeição estas características. Divididas entre ramos teóricos e experimentais, puros e aplicados, têm o seu culminar de pragmatismo nas engenharias, onde é feita recorrência constante aos conhecimentos de ambas as ciências. No entanto - e aqui incorre um erro generalizado - não se deve cair na tentação de dizer que uma ciência apenas é uma ciência somente se fizer uso da matemática. A matemática não é o único sistema lógico possível e a única condição que se exige ao estudo científico, para além da descrição da realidade nas formas acima mencionadas, é que haja uma consistência interna entre toda a sua forma estrutural, as premissas e as conclusões.

Podem outras ciências enquadrar-se nesta classificação? Ciências como a astronomia, basicamente constituída por estudo observacional, não têm propriamente uma aplicação do conhecimento que é adquirido por meio da astrofísica ou da cosmologia. Note-se aqui também a interligação e multidisciplinaridade entre as diversas ciências (daí o derivado astrofísica, cujo tipo de aglutinação é frequente). O mesmo acontece em ciências como a sismologia, que nascem de outras ciências próximas como a geofísica, mas que não possuem (até ao momento?) o dom da previsibilidade eventualmente desejável, tal como expressa no objectivo 2). Devem, por isso, ser consideradas ciências menores, uma vez que não se conseguem reproduzir directamente os seus conhecimentos?; não se deverá antes esta impossibilidade a uma restrição física que transcende o que (actualmente?) o ser humano pode fazer? Os problemas destas aproximações e dos limites de obtenção de informação e sua aplicação, assim como a metodologia utilizada em ciência, serão o objectivo de discussão da próxima entrada, que provavelmente também lidará com os conflitos entre a economia e alguns destes termos.

Tendo a definição, chega-se ao assunto que motiva este texto. O que dizer da economia e outras ciências sociais? A economia (positiva) tem como objectivo, independentemente da metodologia usada, compreender os princípios elementares subjacentes à forma como interagem os seres humanos no que diz respeito às relações comerciais entre si e ao resultado em larga escala destas complexas redes estabelecidas. Esta análise é posteriormente utilizada para retirar ilações sobre as consequências de determinadas políticas económicas ou monetárias, perspectivas futuras de crescimento, investimento, tendências de mercado, etc. Não é isto que se supõe que uma ciência faça?

Uma ciência necessita de características marcantes como a objectividade e a universalidade. Se por um lado se exige que a objectividade seja um parâmetro incondicionalmente relacionado com o racionalismo próprio de uma ciência (que não dê lugar a subjectivismos superiores às especulações científicas próprias que não podem ou ainda não foram confirmadas ou refutadas), a ciência deve ser também universal, ou seja, não deve ser diferente se for estudada no Pólo Norte, Pequim ou nas Nuvens de Magalhães. As conclusões devem ser independentes do referencial (para eventual desgosto de interpretações pós-modernas) e iguais para todos os observadores. Este princípio é uma base das leis da física mas deve ser aplicável a todas as outras. Para além de tudo isto, uma ciência deve ser aprioristicamente céptica - derivado de descartar à partida qualquer explicação sobrenatural ou de natureza metafísica e intangível - assim como assumidamente reducionista, de forma a evitar tendências holistas que directamente intefiram com a tentativa essencial de explicação dos factos, atendendo a hipóteses que os atribuam às suas causas (mais) primárias. Escusado será dizer que não devem existir verdades absolutas, para além dos já referidos princípios axiomáticos, e que a constante revisão é crucial.

Ramos do conhecimento como a filosofia, a literatura ou as artes não se enquadram nesta matriz. No entanto, julgo é possível que, à luz desta definição, por exemplo, a história seja uma ciência, apesar de ter um carácter mais descritivo do que propriamente de aplicação prática, algo que não é assim tão invulgar e costuma afectar algumas ciências (para além das ciências sociais, recordar o caso explícito num dos parágrafos anteriores, sobre os exemplos da astronomia e da sismologia).

Em nenhum destes casos, no entanto, teorias opostas, existindo prova experimental suficiente para fundamentação aceitável (no caso histórico, evidências genéticas, documentos relevantes, datação por carbono, etc), poderão co-existir pacificamente. Dir-se-á que a situação é mais frágil do que em física, onde as teorias são sólidas, mas a verdade é que muita gente recusa aceitar como válida a teoria da relatividade geral, apesar de ser provavelmente a teoria mais bem sucedida da sua história. Assim como existe quem não aceite a mecânica quântica, o modelo padrão de partículas, o Big Bang ou o actual paradigma da cosmologia (lambda-CDM). A ciência é feita de constante remodelação e crítica externa, assim como é, e deve ser, qualquer área de estudo que ambicione responder por esse nome, sob constante ameaça de se tornar numa matéria religiosa em vez de científica. E por revisão, obviamente, não me refiro a rever os factos mas sim rever as teorias.

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* Estas "ciências" cumprem apenas vagamente o segundo critério que enuncio (da aplicação de conhecimento adquirido), nestes casos, por via da criação de um determinado sistema político ou legal. Todavia, focam-se muito mais na questão normativa de como deve ser o sistema - daí os fundamentos éticos que sempre surgem - em vez de como funciona o sistema, tarefa que é geralmente relegada para a economia, a sociologia ou mesmo a psicologia e história.


(continua, possivelmente para a semana)

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