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Monday, June 19, 2006

Anarquismos

Respostas do Miguel Madeira --> I, II e III (é favor ler os textos para entender o contexto nos qual se inserem os comentários que se seguem):

1. Estejamos a falar de anarquismo individualista ou de anarquismo social (anarco-sindicalismo/comunismo, etc.), ambos rejeitam o capitalismo. O Miguel diz também que esta rejeição é feita com base no já referido sentido 3, mas é um igualmente um facto que apesar de nomenclaturas simpáticas e visão parcial dada pela crítica marxista implícita nessa definição, o capitalismo não pode existir sem que exista a margem de liberdade (o que não significa que se concretize) para gerar um lucro e criar emprego. Desta forma, estes "anarquistas" poderão rejeitar a "definição" 3 de "capitalismo" mas terão necessariamente de rejeitar 1 que é aliás, exactamente o que fazem os socialistas clássicos (marxismo, por exemplo). Vêem o capitalismo como o sentido 3, criticam o sentido 3 mas, na verdade, repudiam 1 já que as relações laborais expressas em 3 são ideologicamente vistas como ilegítimas.
2. O exemplo dessa aldeia é muito interessante. Como seria de esperar, desde que seja essa a vontade dos proprietários, neste caso, a comunidade, tudo parece ser aceitável. Contudo, é também interessante a referência à existência de um governo (é colocado misteriosamente entre aspas...). No texto - e apesar de parecer ter sido escrito propositadamente como forma de panfletário - esta espécie de "governo" da aldeia é eleita pelo povo, não se diz se por via democrática. Mesmo que seja uma via democrática, seria interessante saber se há ou não unanimidade no voto. Como se pode sugerir este exemplo como experiência anarquista, se o anarquismo se opõe a toda a forma de poder político? Como é possível e expectável que seja acatada uma decisão que afecte toda a comunidade e não seja do agrado da sua totalidade numa sociedade anarquista? Igualmente sugestiva é a expressão usada, e cito, «[a] associação/comissão (...) continua a governar, a gerir os interesses da comunidade». O que são os "interesses da comunidade"? Como se define algo que varia de acordo com as intenções de cada elemento de uma mesma comunidade?

3.
«por que é que alguém haveria de querer trabalhar para um patrão se, à partida, tem tanto direito como ele a utilizar os bens da comunidade, nomeadamente os instrumentos de trabalho? Para que é que, numa sociedade anarco-socialista, alguêm precisa de trabalhar para um patrão?»

A resposta é bastante simples: a pergunta deveria estar feita ao contrário. Porque não haveria alguém de desejar trabalhar para outra pessoa? A pergunta, feita da forma positiva, induz à partida a que se julgue que trabalhar sem ser por razões de subsistência própria é negativo. Trabalhar para uma pessoa que se conhece é impensável e para a comunidade, composta por vários membros (muitos deles potencialmente desconhecidos), não o é? O erro conceptual está em assumir que a pessoa não poderá encontrar uma forma de trabalho melhor do que a "oferecida" pela comunidade nem que esta seria considerada. Assume-se, novamente, conhecer algo que diz apenas respeito a cada um dos indivíduos e que apenas cada um deles pode determinar por si mesmo, mesmo atendendo à propriedade colectiva dos bens. O que impede que alguém pague por um determinado serviço, ainda que através do uso colectivo dos meios de produção?

Para além de nem todas as relações laborais se estabelecerem na indústria e na agro-pecuária (que é onde a generalidade dos exemplos propostos costuma estar enclausurada), existe o conhecimento ou a técnica necessários para utilizar esses meios da produção de algo. Não parece difícil de imaginar que devido à subjectividade de valor que os tipos de pagamento têm, um determinado empregador poderia oferecer maior benefício (a forma e a quantidade de pagamento) a um potencial empregado do que a comunidade como um todo. Claro que poderão existir 3 linhas de tentativa refutação da ideia proposta:

a) a comunidade pode oferecer, no seu colectivo, tudo o que satisfaça o indivíduo. Isto é curioso porque se baseia na ideia de que o indivíduo não tem vontade própria ou então na de que os recursos naturais e humanos são praticamente infinitos (estando estes próprios recursos humanos dispostos, por sua vez, a prestar "roboticamente" tal serviço à comunidade a troco de algo que potencialmente valorizam menos do que eventuais empregadores lhes possam oferecer);

b) ninguém deseja ser "explorado" e ter um patrão. Vago e de interpretação subjectiva. Há muita gente que a trabalhar por conta de outrem sabe obter mais benefícios do que por conta própria e não tem problema algum com isso.

c) o "empregador" não pode pagar nada porque não possui nada com que possa comerciar, seja por troca directa ou através de uma moeda comum, já que tudo o que produz é propriedade do colectivo, sendo-lhe posteriormente distribuído apenas o essencial para a sua subsistência ou a parcela do total produzido que lhe foi designada. Para além de ir potencialmente contra a ideia de que alguém trabalha realmente por contra própria utilizando meios de produção colectivos, a pergunta sobre o desejo de trabalhar para alguém que não a comunidade deixa de fazer sentido já que não sequer pode ser colocada. Não se pode perguntar qual o incentivo para trabalhar por conta de outrem quando tal coisa se apresenta como uma impossibilidade devido às suas implicações do ponto de vista legal (alguém teria propriedade que comerciar).

4. Quanto à coerção/coacção não é necessário andar com tantos rodeios porque ate é bastante simples. Relativizar a questão da propriedade para que coacção exista em ambos os casos (socialismo e capitalismo), dependendo do referencial a partir do qual se analise, não faz sentido. Vamos colocar a questão de uma forma clara. Num sistema (anarco-)capitalista, os socialistas podem ter propriedades que partilhem e giram em conjunto e ninguém tem nada que ver com isso. Num regime de anarquismo social - em que a propriedade privada não é reconhecida - não se pode sequer abrir e gerir individualmente uma mercearia, o que inclui a impossibilidade de estabelecer relações laborais. Qual dos regimes proíbe especifica e explicitamente um tipo de organização social? Qual dos dois é, por conseguinte, menos livre?

A ter em conta, também, que para abolir a propriedade privada é necessário literalmente expropriar os proprietários e não apenas sugerir essas utopias de que a propriedade só é defendida pelo Estado. Para impedir as pessoas de fazer valer os seus direitos de propriedade é necessário recorrer à força contra o próprio proprietário. Pelo contrário, no caso hipotético de uma "privatização" de uma propriedade colectiva em várias individuais (que nem tem nada a ver com o assunto mas serve como comparação), nada impede que os membros que desejam voltar a unir as suas propriedades, na incrivelmente extrema eventualidade de que o desejem fazer, não o façam livremente.

5. Não vejo que seja muito relevante falar de conflitos de propriedade como se fosse algo meramente pertencente a um sistema que reconheça a propriedade privada. Se as diversas formas dos anarquismos mencionados pretendem distribuir, por exemplo, parcelas de terreno individualmente, como julgam que não existiram conflitos de propriedade à semelhança do capitalismo? Qual a razão especial que faz com que tudo coincida harmonicamente sem que existam problemas? É a comunidade quem define que "propriedade" fica à guarda de uma determinada pessoa? E se essa pessoa preferir gerir a "propriedade" do vizinho? Efectivamente, os conflitos deste género até se tornam mais interessantes num regime que não reconheça a propriedade. Para o capitalismo, cada um teria a sua propriedade (não há nada como "distribuição" quando os limites já estão definidos à partida por gerações ou negócios anteriores) e existiria uma moeda de troca para que as propriedades fossem compradas ou vendidas. Por sua vez, no sistema proposto, cada um poderá realmente argumentar que a propriedade é de todos e por isso mesmo ambos preferem aquela parcela, não se chegando a uma resolução lógica. Qualquer reconhecimento por parte de uma "assembleia judicial" de que o membro X tinha mais direitos sobre aquele terreno do que outro por que razão fosse, seria como reconhecer que este tinha direito a estar ali e o outro não. Não existindo reconhecimento de propriedade privada, que razões tem o membro Y para respeitar e aceitar tal deliberação? Afinal, a propriedade também é de todos...

6. Citação do Miguel (sem distorções do contexto por minha parte...):

«Para falar a verdade, eu também não sei se poderemos falar em "comércio livre" no contexto do anarco-socialismo (no fundo, o que eu queria dizer, era que o "comércio livre" não seria abolido por si, mas que talvez morresse de "morte natural", por deixar de existir muita da sua base), mas apesar de tudo, talvez sim.»
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Fica a dúvida sobre como é que se mata algo natural e espontâneo de forma... natural e espontânea.

7. A questão sobre o bilhete de cinema é muito engraçada. O único problema está em que o bilhete não vende aquele lugar do cinema, apenas o aluga para a sessão do filme a que diz respeito logo, quando se comercia um bilhete de cinema (também não faço ideia se é legal mas é irrelevante), apenas se está a conceder o direito de frequentar um determinado local a uma determinada hora. E isto é comércio livre porque foram as condições inicialmente definidas pelo proprietário da sala de cinema. O contrato entre o proprietário e o comprador não lhe dava muito mais direitos do que esse.

8. O Miguel diz que numa sociedade anarco-socialista em que a propriedade está definida comunitariamente, a comunidade está encarregue de regular os meios de produção. A menos que o Miguel julgue que a comunidade estaria em peso a tomar as decisões (centenas, talvez milhares de pessoas) e não escolhesse uma forma de "representatividade democrática", não se consegue dissociar esta concepção da de um Estado. E claro, um Estado comunista. Obviamente também se poderia dizer que era uma sociedade anarquista (como na verdade dizem muitos noruegueses, presumíveis adeptos da ideologia "anarquista", relativamente ao seu país) mas da mesma forma se pode dizer que Portugal é um país anarquista e escolhe ter um Estado ("comissão", "governo", "assembleia") porque é a sua vontade enquanto anarquista... Todos os que não respeitem a vontade da maioria da "comunidade portuguesa" são os que estão contra o sistema imposto pelos anarquistas que livremente decidem a vigência do actual sistema. Todo o anarquismo de cariz "social" corrompe o que é realmente o anarquismo, levando o indivíduo, que deveria ser o centro de poder, a vergar-se perante a vontade da maioria que o rodeia, independentemente da sua aceitação da corrente política. Aqui reside outras das conclusões absurdas. Se as decisões se fazem pela vontade da comunidade, então não existe diferença entre o anarquismo e o regime democrático, o que é absolutamente ridículo.

Quanto à ideia de que a comunidade "apenas" teria como propriedade os meios de produção, a ideia é demasiado difusa por natureza, assim como já o é na análise económica marxista. Por exemplo, tem-se estado aqui a dizer que a pessoa poderia trabalhar por conta própria com os meios de produção possuídos pela sociedade e assim produziria para si própria. Imagine-se que gere um pomar e produz laranjas. Mas serão as laranjas para consumo próprio e garantia de subsistência ou um meio de produção? É que essa pessoa pode usá-las para fazer umas tartes de laranja e começar a vendê-las. Ou pegar em linho e algodão e fazer roupas para si, e talvez abrir um negócio pessoal de pronto-a-vestir. Onde é que fica desenhada a linha de meios de produção? Como fazer com que a abolição da propriedade privada sobre os "meios de produção" não seja apenas uma via para implementar a escravatura sob a máscara de uma libertação?

9. Claro que a pergunta sobre a legitimidade de um sistema de definição de propriedade pode ser feita relativamente a qualquer um. Mas enquanto um sistema anarquista (ou seja, anarco-capitalista) é legítimo, coisas como o anarco-comunismo não o são. Num sistema anarco-capitalista, como se explicava no ponto 5, é dada liberdade total aos indivíduos para definir como desejam viver na sociedade e é perfeitamente válido (embora diria que não fosse natural) que surjam agregações onde a propriedade é encarada de uma forma menos liberal. Regimes que à partida proíbem todos os outros tipos de organização não podem ser considerados propriamente legítimos e muito menos anarquistas. Uma analogia recorrente poderá ser a de pensar no planeta Terra como um sistema onde diversos estados se organizam de forma anárquica e cada um decide como funcionará. Assim, existem países mais normais e outros menos normais.

Da mesma forma, (anarco-)comunistas poderiam perfeitamente viver numa sociedade anarco-capitalista desde que fossem suficientemente honestos para distinguir entre a abolição da propriedade privada e a definição da propriedade como um bem colectivo. Seria interessante observar este jogo de forças e saber se o desejo de implementação de um sistema colectivista se baseia apenas na crença de que leva a uma sociedade melhor (caso em que poderiam viver numa comunidade que assim pensasse) ou se se movem simplesmente pela cobiça da propriedade alheia e tentariam combater os capitalistas da área.

10. Não foi argumentado que para que o anarco-comunismo funcionasse 100% dos membros teriam de estar de acordo mas sim que para que fosse válido (no sentido de legítimo), esta condição teria de ser verificada uma vez que são impostas sérias restrições a determinados tipos de liberdade.

11. A sugestão de que numa sociedade sem Estado, o sistema de direitos de propriedade seria o reconhecido pela generalidade das pessoas nessa área é a correcta. Acontece que, por natureza, a maior parte das pessoas defende os direitos de propriedade privada. Muitas vezes poderão até dizer o contrário mas é interessante testar os seus instintos e a verdade é que se vivermos sozinhos e a meio da noite ouvirmos alguém a dar passos sorrateiros na sala, não assumimos que seja um anarco-socialista que se sentiu sozinho do outro lado da cidade e decidiu partilhar connosco a nossa propriedade para discutir a exploração laboral até às 4 da manhã mas sim alguém que invadiu a casa e a pretende roubar ou por em causa a nossa integridade física. Proteger a propriedade, assim como proteger a vida, é algo tão natural que até outros animais o fazem.

Claro que existe sempre uma parcela da população que não pensa assim e também não agiria assim. Mas essa percentagem é absolutamente mínima. Não conto com os comunistas (políticos) que nem sequer falam em formas de anarquismo e avançam logo para discursos de nacionalização e colectivização (eufemismos para apropriação de tudo por parte do Estado, fazendo eles parte do Estado...) mas com a percentagem muito reduzida de anarquistas de esquerdas que existem e que efectivamente estariam dispostos a participar numa comunidade desse tipo. Tirando esta minoria, a restante humanidade vive à base do reconhecimento da propriedade privada e assim tem sido desde que nos conhecemos como espécie. Qualquer outra forma de gerir as propriedades que tenha sido introduzida ao longo da história resultou sempre em caos quando aplicada à larga escala. Curiosamente, ninguém falou em introduzir um conceito de propriedade privada numa sociedade porque, obviamente, este já existe de forma natural.

12. Há que reconhecer que o exemplo da praia não é muito feliz, não só pela falta de dados como pela aparente impulsividade do hipotético Miguel Madeira. Antes de mais, se a praia teve gente a ir lá de seguida é porque, decerto, já a frequentava anteriormente. Se já usufruíam daquele espaço e este era um local considerado público, então não existe grande legitimidade para reclamar aquela propriedade a menos que fosse com o consentimento das pessoas que usualmente o frequentavam e que seriam, de forma abstracta, as pessoas com mais direito a pronunciar-se sobre o futuro do local. Claro que se a praia tivesse sido adquirida, herdada ou algo do género, os banhistas já estariam a par disso porque a praia já possuía um proprietário.

Escusado será dizer que a situação de confronto entre as agências de segurança, provavelmente, nunca iria acontecer. Não só pela situação em si e pelas razões de estabilidade financeira apontadas pelo Miguel como também pelo facto de elas próprias não se quererem envolver em distúrbios sérios potencialmente considerados ilegais [um tribunal independente daria a reclamação como ilegítima].

13. A anarquia (estou a falar de uma verdadeira anarquia com privatização da lei e tudo) nunca poderia produzir resultados semelhantes a uma democracia porque não seria regulada pelos interesses da maioria mas sim pelo interesse individual de cada um dos habitantes de um determinado local. Nesse sentido, a anarquia é - realmente - muito mais directa e descentralizada mas não pode ser comparada com um processo governativo em que existe um Estado e onde as acções deste estão dependentes da decisão dos votantes que penderam em maior número para um dado resultado (seja do género plebiscitário ou legislativo). Obviamente, existem algumas decisões gerais que poderiam ser tomadas em conjunto mas isso seria algo a determinar a nível local e de acordo com a vontade expressa pelos indivíduos, não sob uma forma que afectassem que não estivessem implicado na resolução. Decisões em conjunto à pequena escala todos fazemos diariamente.

14. Quanto à protecção dos mais poderosos - e para finalizar - sim, essa dedução lógica está totalmente correcta e é verdadeira. O Estado protege os mais poderosos. Quando eu disse que a sugestão, provavelmente por influência da luta de classes marxista, de que o capitalismo protege a propriedade dos mais poderosos é uma concepção errada queria dizer que o capitalismo não favorece um proprietário apenas porque ele é mais poderoso economicamente. Falta um "apenas" ou um "privilegiadamente" entre "protege" e "a". Falha por omissão.

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