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Tuesday, January 09, 2007

Puro veneno

[Previamente publicado n'O Insurgente]

A opinião geral na Europa está sempre muito direccionada para dar especial atenção a todos os crimes chocantes e merecedores de indignação que são cometidos nos EUA, especialmente porque existe a ideia subjacente de que a defesa pessoal com o uso de uma arma de fogo é, de alguma forma, moralmente ilegítima – esta deve ser proporcionada única e exclusivamente pelo Estado – e que a não observação desta regra de ouro conduz inevitavelmente a um desastre social. Paralelamente, junta-se o preconceito de que nos EUA os pobres são uma espécie de excluídos da sociedade aos quais não é proporcionada (repare-se na indelével marca estatista do verbo na voz passiva) qualquer qualidade de vida em comparação com o paraíso idílico que estes encontram em solo europeu ou em qualquer outro local onde se esteja a "construir" uma sociedade "a sério".

Assim, quando há um homicídio (ou múltiplos homicídios) numa escola secundária americana onde um maníaco desata aos tiros com uma arma qualquer, a culpa é inexoravelmente da segunda emenda da constituição americana, que não postula os princípios de uma sociedade civilizada mas antes a de uns cowboys do velho oeste, do lóbi da National Rifle Association e, em simultâneo, da desumanização da sociedade consumista americana, do desespero total de quem não tem forma de sobrevivência e por aí adiante.

Argumentações cujo único objectivo, por vezes muito mal dissimulado, é dominar, controlar e proibir as acções mais naturais e livres do ser humano. Obviamente, é extremamente difícil fazer com que defensores incondicionais de uma interpretação paranormal da realidade à Bowling for Columbine aceitem ou esbocem argumentos racionais, estejam dispostos a comparar dados e tendências ou a antever as consequências a longo prazo das medidas que geralmente defendem no mundo real. Assim, através do espírito da época presente, nascem fenómenos de comunicação social também paranormais que se encarregam de manter e conservar esse próprio espírito.

Contudo, cada peripécia deste tipo acaba sempre por envolver algum grau de ironia. Num dos países mais pobres da América do Sul, onde os números se vão segurando à custa da venda desmedida de petróleo, ocorreu na passagem de ano uma tragédia que em qualquer país da OCDE receberia a classificação de massacre – foram assassinadas quase 150 pessoas em crimes distintos aparentemente não relacionados uns com os outros. Contrariamente a esta notícia que passou praticamente em branco, os meios de comunicação social andaram muito mais ocupados a noticiar, um ou dois dias depois, com grande destaque, o tiroteio numa escola secundária de Washington da qual resultou ("apenas") 1 morto.

Claro que a este ponto surgirá inevitavelmente o argumento, já habitual, de que estas coisas acontecem, tanto na reacção das pessoas como nos media, porque no caso norte-americano se coloca a fasquia muito mais elevada do que para um país sul-americano. Este argumento estaria dotado de uma coerência perfeitamente válida não fora o facto de denunciar uma lógica semelhante ao que se observou, no ano anterior, com o desastre do furacão Katrina, e que entra directamente em contradição com a atitude generalizada. Se o resultado expectável é, efectivamente, semelhante ao exposto no primeiro parágrafo, então não haveria razão alguma para tanta surpresa e choque ou colocação elevada de supostas fasquias. Tiroteios mortíferos, pilhagens, massacres, assassínios, etc. – nada disto seria surpreendente porque seriam resultados totalmente previsíveis e não haveria grande razão para que se tornassem grandes notícias, já que seriam extremamente frequentes (é por isso que já ninguém abre telejornais ou coloca nas capas da imprensa um ataque bombista no Iraque que mata dezenas de pessoas). Aliás, a verdade é que muita gente usa exactamente estes acontecimentos como confirmação e perfeita ilustração da sua teoria acerca da "sociedade americana" (alguns têm sérios problemas em evitar demonstrar o seu contentamento), alternando apenas com o argumento das diferentes fasquias quando encurralada entre a informação existente, no que diz respeito a diversos países, e a respectiva conjugação com as suas críticas mais ferozes e indignações mais significativas.

Este comportamento serve, resumidamente, para duas coisas. A primeira consiste em criar um mecanismo psicológico em que o indivíduo confirma sempre os seus preconceitos políticos através das notícias que lhe são disponibilizadas, não prestando qualquer atenção ao enquadramento estatístico da amostra que está a usar. Qualquer desastre que tome lugar nos EUA constitui uma prova irrefutável da sua teoria política, independentemente de coisas semelhantes, piores ou mais frequentes que aconteçam noutros locais. A segunda é a tentativa subtil de ocultação das verdadeiras intenções. A pouca divulgação de notícias como esta referente à Venezuela e o argumento das "fasquias de nível civilizacional" permitem que as máscaras se mantenham sem aparentar hipocrisias. Para quem acredita piamente que eventos deste género são resultados atribuíveis, na sua totalidade, aos sistemas políticos em vigor e ao conjunto de leis que cada uma das sociedades mantém como válido, refreando com muita dificuldade a sua vontade necrófaga de aproveitar politicamente qualquer catástrofe proveniente da terra dos yankees que surja em forma de breaking news, notícias como estas imploram para ser enterradas o mais possível ou negadas até ao absurdo. Se pouca gente souber (também não vale a pena andar a dizer por aí, dado que a Venezuela até está a dar um grande passo em frente) ninguém vai notar que a verdadeira preocupação não são os efeitos sociais reais das políticas exercidas em diferentes países, mas o facto de os EUA não seguirem o género de linha política interna que essas pessoas desejariam. Se assim não for, é possível que alguém repare e diga alguma coisa.

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