As reacções de
António Costa e do
governo português ao
relatório norte-americano que apresentava, entre outras coisas, indícios de abusos das forças de segurança e tráfico de seres humanos em Portugal foi muito interessante. Não reconhecem legitimidade ao departamento de estado dos EUA para avaliar o respeito pelos direitos humanos noutros países e António Costa vai ainda mais longe, apontando que os EUA têm muito com que se preocupar internamente em termos de direitos humanos. Este tipo de respostas espontâneas acabam sempre por gerar problemas se forem analisadas mais de perto. É que os responsáveis portugueses podiam simplesmente ter dito que 1) não tinham lido o relatório e, portanto, não se iriam pronunciar antecipada e precipitadamente, 2) tinham lido e não concordavam (apontando evidências que contradissessem os resultados da avaliação) ou 3) tinham dado início a um processo de averiguação para apurar se os factos apontados se confirmavam, garantindo que seriam tomadas medidas adequadas se necessário. Em vez disto, preferiram simplesmente desautorizar qualquer relatório externo que contenha dados verídicos apenas porque é proveniente de outro país.
As duas consequências mais evidentes são que, a partir deste momento, ninguém no governo poderá criticar qualquer aparente violação dos direitos humanos noutro país que não Portugal (os EUA, por exemplo), coisa que, aliás, António Costa teve a exímia capacidade intelectual de conseguir fazer exactamente na mesma entrevista em que também afirmava que nenhum país tinha legitimidade para julgar outro. A outra consequência é que se o governo está realmente a falar a sério - se não estiver, a única razão para descredibilizar o dito estudo é ocultar conhecimentos que possua sobre o que realmente se passa com os direitos humanos em Portugal, o que, no mínimo, levanta algumas suspeitas - deixará de poder apresentar-se como defensor internacional dos direitos humanos dado que assim como o Estado português recusa a avaliação externa (afinal de contas, a avaliação da actuação de um governo feita por si próprio é infinitamente mais isenta e fiável...) qualquer outra entidade soberana pode reclamar o mesmo e não reconhecer autoridade a Portugal, ou a outro país, tendo o governo de dizer que está de acordo com essa decisão, o que o obrigaria a ser condescendente com estes crimes mesmo que os seus parceiros em política externa o pressionem - ou seja, que, no fundo, reconhece a si mesmo e aos outros autoridade zero para discutir o que se passa noutros países que não os respectivos. [Não vale a pena ter acessos de ingenuidade, os governos nunca são coerentes com as suas declarações por isso isto não vai acontecer] O panorama dos direitos humanos em Portugal também não sai mais reforçado já que se efectivamente existir algum problema, o governo só iria responder a análises feitas por si próprio (os guardas não precisam de ninguém que os guarde, a lei é para regular a acção do povo) ou de organizações não-governamentais.
Atacar o mensageiro é muito fácil e satisfaz pelo seu conteúdo emocional que, não respondendo à veracidade das premissas envolvidas no assunto, o desvia para outro mais atractivo e simpático mas que é totalmente irrelevante para o facto em causa. Seja qual for a verdadeira razão do governo para rejeitar o relatório de forma tão imediata - populismo nacionalista/antiamericano ou disfarce - tal comportmento não pode implicar nada de bom. Talvez as pessoas que costumam orgulhar-se do papel que Portugal supostamente representa no mundo, em termos da defesa histórica de certos valores civilizacionais (por exemplo, a abolição precoce da pena de morte) encarados como absolutos, devessem considerar seriamente as consequências destas declarações e a aparente inexistência de qualquer reacção visível de contestação.