[Previamente publicado n'O Insurgente]
Todas as discussões sobre o estado do ensino superior em Portugal acabam mais ou menos da mesma forma - com um consenso geral sobre as qualidades visíveis que este deveria apresentar e não apresenta. Formação com um elevado padrão de qualidade a nível internacional, preparação para uma flexibilidade laboral, eficiência optimizada no aproveitamento de recursos financeiros e didácticos disponíveis, professores de simultâneo talento pedagógico e científico e um clima que propicie a investigação e respectiva troca com a sociedade de cariz não-académico.
Não há nenhum problema endógeno em todos estes desejos. A incompatibilidade surge apenas quando aqueles que concordam entre si sobre a discordância relativa ao actual panorama do ensino superior se revelam como sendo socialistas da velha escola, um problema que afecta particular e gravemente a elite académica (este sim, um problema de endogenia e endogamia). Acontece que adicionalmente a todas estas ânsias por resultados palpáveis, ambicionam também - o que talvez seja a cereja no topo do bolo - um ensino superior tendencialmente gratuito e cumpridor de determinados padrões de uniformização para efeito de igualdade de condições e oportunidades, de tal forma que não se verifiquem grandes disparidades entre cursos de universidades diferentes, métodos de avaliação, critérios de financiamento de projectos, etc. Isto é tão exequível como querer fundir o modelo de qualidade do emblema Ivy League/Russell Group com o paraíso tecnológico japonês e o "preço" e a "igualdade" da educação em Cuba.
Uma vez que é impossível combinar a oferta de todas estas características de uma forma espontânea - o que qualquer crítico social omnisciente e eticamente intocável reconhecerá como uma falha significativa - é aqui que o apelo à participação das instâncias estatais entra em cena; o planeamento central é sempre o agente de recurso quando o objecto contestado é parte das consequências de viver num mundo onde a criação natural de serviços serve o actual estado de evolução de uma dada sociedade. Este apelo não se limita obviamente a um pedido à interferência no sector - até porque no caso português o ensino estatal já constitui uma grande fatia do paradigma actual - mas sim a modificações na fórmula de engenharia vigente. O Estado acaba assim por assumir o papel de derradeiro responsável pela tarefa do ensino universitário e daí resulta que passam a ser geridos os recursos académicos de acordo com o que os dirigentes nomeados pensam ser correcto e não consoante o processo típico de uma economia de mercado, que é como quem diz, com as escolhas a serem feitas por parte de quem paga o serviço.
Há várias consequências resultantes deste tipo de política. A primeiro é a de que todos estes recursos, mesmo tendo em conta o factor das variantes regionais, passam a ser alvo de uma racionalização programada pois é impossível cobrir tudo com semelhante ênfase. O ensino superior - métodos de ensino, cursos, disciplinas, horários - tem, portanto, de ser elaborado para o aluno médio e para as saídas profissionais médias. Como não existe tal coisa como o aluno médio nem a profissão média, este acaba por não estar adaptado para servir ninguém de forma integral, sendo que esta racionalização massiva acaba por danificar a liberdade de escolha e consequentes nichos de mercado que poderiam surgir, os quais são substituídos por cursos de carácter mais generalista. Como os critérios de selecção do que deve ser ensinado estão a cargo dos comités organizados pelas próprias universidades em questão (em algum ponto da linha, encontra-se também a barreira do Portugal das ordens profissionais, mas esse é outro problema), gera-se desperdício generalizado por duas vias: se por um lado, visto que há dinheiro para torrar à vontade sem grande discernimento, existem cursos e opções de utilidade duvidosa que ninguém frequenta e continuam a ser mantidos, por outro é extremamente frequente observar, dentro do carácter generalista, uma incidência concreta sobre matérias que os alunos nunca poderão colocar em prática a menos que estejam a pensar em ser eles próprios sustentados pela estrutura académica estatal (nesse caso, ainda terão provavelmente vários anos de luta na selva de "amiguismos" pela frente) ou considerem a hipótese de emigração. Dados estes factos, o
desemprego crescente que se verifica entre licenciados não é muito surpreendente. E muito menos surpreendente é ler os dados que apontam as percentagens de licenciados a trabalhar, também sem grande surpresa, em áreas que requerem qualificações inferiores às que adquiriram. A insistência tenaz apenas acaba por ironicamente reflectir a lógica do ciclo vicioso. Quanto mais a sociedade é forçada a investir em ramos demasiado específicos dos quais faz pouco uso, mais tempo lhe levará a acumular necessidade suficiente para os tornar relevantes e desejados.
Existem muitas outras fontes que permitem entender onde está o desperdício, seja porque o dinheiro acaba por ir parar a actividades que produzem algo de valor muito inferior ao que com elas é despendido, devido às próprias consequências do modelo seguido, ou porque simplesmente a estrutura de remunerações e outros gastos é definida por decreto; mas a juntar a isto há sempre o problema de que qualquer instituição cuja sujeição às forças de mercado esteja demasiado mitigada dificilmente criará resultados que se distingam pelo mérito do seu trabalho. Como não está submetida à necessidade directa de garantir uma auto-subsistência, não há nem incentivo à organização interna que promova e premeie a qualidade - para além do facto de que, sendo estatal, está sujeita à necessidade de se apresentar como um símbolo de "igualdade" em alguma medida - nem há razão para estabelecer um
feedback real e dinâmico com aqueles que deveria servir. A sua existência e manutenção, uma vez que maior independência nunca a tem nem provavelmente a deseja por representar uma cessão da obediência a estes princípios, diz apenas respeito a motivos políticos e não económicos. É aqui que o sonho socialista se começa a desfazer. Qualidade vislumbra-se muito pouca, desperdício sobra em demasiada e os fundos investidos na educação através dos impostos, se fossem colocados a circular livremente, provavelmente dariam para ensinar várias gerações em universidades privadas, também elas criadas com parte desse dinheiro. De notar que, no entanto, qualquer defensor do ensino estatal é também quase sempre um fervoroso defensor do combate ao esbanjamento e da promoção de valores como a qualidade, a criatividade e a inovação, o que é quase tão gracioso como os políticos que se manifestam fortemente contra a corrupção.
No fim de tudo, apenas se pode concluir que o desígnio utópico da resolução dos problemas de mercado através de uma solução que se supõe superior a este - por não responder aos seus mecanismos próprios - e os corrige, acaba também por falhar redondamente e ter resultados muito distintos dos objectivos delineados à partida quando necessita de encarar o mundo real. Como tenta responder a quase tudo e acaba por responder a quase nada, muitas vezes, os efeitos são ainda mais negativos do que o problema que se apresentava inicialmente, não só porque se estabelecem novas relações entre o poder político e a forma como este se relaciona com as pessoas, mas porque o poder político passa a poder controlar a própria forma como estas se relacionam entre si, e consigo mesmo, por meio das regras que ele próprio estipula. É por isso que em Portugal se discute como deve ser financiado e gerido o ensino superior (e o ensino em geral) há décadas e toda a gente concorda exactamente em quais são os resultados desejados mas praticamente toda a gente prescreve a forma errada de os alcançar. A maior prova disto é que o ensino português não tem particular fama de ser de grande qualidade, não gera uma sociedade com o conhecimento proporcional que devia fornecer quando comparado com o que com ele se gasta, oferece poucas opções relevantes ao mesmo tempo que tem opções irrelevantes em demasia, é tudo menos barato e, acima de tudo, não é livre. Porque nem incute a responsabilização individual dos alunos, nem promove a autonomia das universidades (sejam elas estatais ou privadas), nem responde às escolhas dos pais, nem cria oportunidades para as empresas ou para as eventuais ofertas de ensino providenciadas a menor escala por outros meios que não os regulares (ensino especializado, ensino à distância, etc.).
Pedir ao Estado que faça alguma coisa é extremamente fácil. Tão fácil e previsível como aguardar que uma infindável série de governos se sintam seduzidos pela visão de que tal aliciante pedido lhes permita adquirir ainda mais poder, para dominar ou controlar. Difícil é fazer o caminho no sentido inverso - compreender as razões pelas quais a pseudo-solução anterior apenas gera constantemente becos sem saída a cada direcção para a qual se tente virar e reconhecer que muitos dos problemas tipicamente apontados são precisamente a consequência do modelo actual que, em teoria, se oferecia como forma de resolução para outros problemas que permanecem sem ser resolvidos.